O descabimento da prisão civil pelo inadimplemento de crédito trabalhista

AutorLise Nery Mota
CargoAdvogada Trabalhista
Páginas209-230

Page 210

1. Introdução

A1 presente pesquisa pretende realizar uma investigação, não exaustiva,2 acerca do descabimento da prisão civil como técnica coercitiva pelo inadimplemento de obrigação trabalhista de natureza alimentar, em face das inovações trazidas pela Emenda Constitucional n. 30/2000, que inseriu o §1.º-A ao art. 100 da Constituição Federal, além da influência do art. 5º, LXVII da Constituição Federal e da Lei n. 5.478 (Lei de Alimentos).

Serão desenvolvidas análises comparativas e diferenciadoras entre as diversas espécies de créditos de natureza alimentícia, tanto no seu aspecto material quanto no procedimental.

Objetiva-se, assim, realizar um estudo dos atributos da prestação alimentar, de acordo com a problemática atual da efetivação por meio de medida coercitiva, tomando, principalmente, como princípio norteador, a dignidade da pessoa humana.

2. Prisão civil pelo inadimplemento de crédito trabalhista
2.1. Posicionamento favorável

Determinado segmento doutrinário vem criando uma teoria, segundo a qual o conceito do instituto “alimentos” seria ampliado de forma a englobar os créditos de natureza trabalhista e, com isso, ensejaria a possibilidade de decretação de prisão civil por seu inadimplemento.

Pauta-se, em verdade, no art. 100, § 1º-A da Constituição Federal, conforme poderá ser visto a seguir:

“Como é palmar, nos termos do art. 5º, LXVII, da CRFB, não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Consoante se depreende, extrai-se cristalina, da leitura do texto constitucional, a possibili-dade da ocorrência de prisão civil do devedor, oriunda do descumprimento espontâneo do dever de solver os débitos alimentares de sua responsabilidade.

De minha parte, creio que a Carta Magna de 1988 traz subsídios indispensáveis à apreensão do conteúdo dilatado que o constituinte originário dirigiu ao crédito alimentar, para nele inserir não apenas as obrigações devidas entre familiares, mas também os créditos de origem trabalhista.

Aliás, singela a demonstração do afirmado, bastando, à sua visualização, a leitura um pouco mais atenta do art. 100 da CRFB, que deixa claro, no seu caput, a possibilidade da Fazenda Federal, Estadual ou Municipal ser devedora de créditos de natureza alimentícia, ditando ao depois, no parágrafo 1º-A, com todas as letras e sem subterfúgios, que os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil.”3

Justifica, ainda, a viabilidade da decretação da prisão civil pelo inadimplemento de crédito trabalhista embasando-se no fato de que o credor poderia ficar inadimplente junto aos agentes de mercado.

“Com efeito, um dos efeitos do não recebimento do salário, é o de que o empregado torna-se inadimplente, pois não tem os

Page 211

meios para cumprir suas obrigações, e, por via de consequência, perde o crédito junto à praça, deixando de ter acesso a bens de consumo, muitas vezes básicos, ficando à margem do processo social. O trabalhador marginalizado passa a buscar a satisfação de suas necessidades básicas através de procedimentos ilícitos, como, por exemplo, o furto, o que gera, inevitavelmente, violência.”4Os adeptos desta teoria argumentam que o não recebimento desses créditos gera perda da aptidão psíquica, causando problemas nas relações pessoais.

“Inegável, por outro lado, que o empregado que não recebe salário, tem sua condição psíquica afetada, perdendo sua aptidão produtiva normal, o que causa redução, ao menos qualitativa, no processo produtivo e prejuízo à empresa. As relações sociais do empregado nesta situação também se degradam, mormente em relação à família e aos colegas de trabalho, acarretando, não raro, efeitos sociais nefastos.”5De mais a mais, equiparam o salário mínimo (art. 7º, IV, CF) aos alimentos propriamente ditos.

“Como se não bastasse, é preciso ver que a mesma CRFB, conceitua, no seu art. 7º, IV, o salário mínimo como sendo aquele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Com efeito, conjugada a redação do art. 7º da Constituição Brasileira (que trata dos direitos dos trabalhadores) com a definição de alimentos de Pontes de Miranda, esboçada em linhas transatas, segundo a qual os créditos alimentares possuem o sentido amplo de compreender tudo quanto for imprescindível ao sustento, à habitação, ao vestuário, ao tratamento das enfermidades e às despesas de criação e educação, não se pode olvidar, mais uma vez, que, iniludivelmente, o constituinte de 1988 ampliou o conceito de obrigação alimentícia para além daquele vetustamente considerado no Direito de Família.

De tal arte, da pormenorizada análise do previsto no art. 5º, LXVII, da CRFB, não posso concluir de maneira diversa, senão considerando que o inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia de origem trabalhista renderá ensejo à prisão civil.”6Finalmente, enumeram as semelhanças entre os ritos da Lei Trabalhista (CLT) e da Lei de Alimentos.

“Mas, a dívida trabalhista, na sua essência, principalmente, os salários e as verbas rescisórias, é de índole alimentar. Repare-se, a propósito, que o legislador deu tratamento praticamente isonômico à pensão de alimentos e à dívida trabalhista. Cabe verificar, com efeito, neste sentido, a similitude entre o rito preconizado pela Lei n. 5.478/68, que dispõe sobre a ação de alimentos, e o rito da CLT. A semelhança é tanta, que se poderia dizer estarmos diante de dois diplomas germanos.”7

Page 212

2.2. Posicionamento contrário
2.2.1. Alimentos: conceito e espécies

Neste momento, torna-se fundamental conceituar o instituto dos alimentos. Segundo Silvio Rodrigues: “Alimentos, em direito, denomina-se a prestação fornecida a uma pessoa, em dinheiro ou em espécie, para que possa atender às necessidades da vida”.8Diante disso, pode-se classificar os alimentos em determinadas categorias. Senão, vejamos.

Os alimentos podem ser:

  1. quanto à natureza

    1. alimentos naturais: São os que dizem respeito exclusivamente às necessidades básicas, vitais, “compreendendo tão somente a alimentação, a cura, o vestuário, a habitação, nos limites assim do necessarium vitae9;

    2. alimentos civis: Abrangem as necessidades sociais, intelectuais e morais.

  2. quanto à finalidade

    1. alimentos provisionais: Possuem natureza cautelar, sendo fixados de forma preparatória ou incidental na ação;

    2. alimentos provisórios: Têm caráter antecipatório, sendo concedidos, na ação de alimentos, initio litis;

    3. alimentos definitivos ou regulares: “Aqueles estabelecidos pelo juiz ou mediante acordo das próprias partes, com prestações periódicas, de caráter permanente, ainda que sujeitos a eventual revisão”10.

  3. quanto ao momento da prestação

    1. alimentos futuros: “São os que se prestam em virtude de decisão judicial ou de acordo, e a partir dela”11;

    2. alimentos pretéritos: São os anteriores a qualquer desses momentos”12.

  4. quanto à causa jurídica

    1. alimentos legítimos (“ex iure sanguinis”): Por força de obrigação de lei: casamento/ união estável ou do parentesco;

    2. alimentos voluntários: Advem de declaração entre vivos, de quem não estava obrigado a prestá-los;

    3. alimentos indenizativos: Emanam da prática de ato ilícito, como forma de indenização.

    Observadas as categorias acima descritas, passa-se, agora, ao exame distintivo desta última classificação, de modo que se visualize a impossibilidade da prisão civil pelo inadimplemento de obrigação pecuniária trabalhista.

    Cabe asseverar que a técnica coercitiva da prisão civil por dívida alimentar restringe-se, exclusivamente, à hipótese dos alimentos legítimos, ou seja, do vínculo familiar formado entre alimentando e alimentante.

    Neste sentido, Caio Mário da Silva Pereira adverte: “O fundamento originário desta obrigação é o vínculo da ‘solidariedade familiar’ ou de sangue ou ainda a lei natural”.13

    A visão de Amilcar de Castro vem ratificar e complementar esta notícia: “Conquanto seja relação apreciável por direito privado, relação de família, tem caráter de ordem pública, e interessa diretamente à sociedade, porque tem fundamento na subsistência do indivíduo e na solidariedade familiar”.14

    Page 213

    Certamente, o objetivo primeiro do legislador foi o de implementar mecanismo capaz de tutelar o seio familiar.

    “A fundamentação do dever de alimentos encontra-se no princípio da solidariedade, ou seja, a fonte da obrigação alimentar são os laços de parentalidade que ligam as pessoas que constituem uma família, independentemente de seu tipo: casamento, união estável, famílias monoparentais, homoafetivas, parentalidade socioafetiva, entre outras.”15Sendo assim, inaceitável equiparação entre institutos de origens diversas, razão pela qual justifica-se a aplicação de regramentos estanques.

2.2.2. Algumas peculiaridades dos alimentos próprios/legítimos

Imprescindível, neste momento, trazer à baila duas modalidades de obrigação alimentar, teorizada por José Amir do Amaral. De acordo com o autor:

“Devemos, segundo penso, fazer distinção entre...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT