Os desafios contemporâneos da produção do conhecimento: o apelo para interdisciplinaridade

AutorClaude Raynaut
CargoDoutor em Etnologia e Diretor de Pesquisas no Centro de Pesquisas Científicas da França (CNRS) da Universidade de Bordeaux, França
Páginas1-22
1807-1384.2014v11n1p1
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
OS DESAFIOS CONTEMPONEOS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: O
APELO PARA INTERDISCIPLINARIDADE
1
Claude Raynaut2
Resumo:
Estamos atravessando hoje um momento de reconstrução radical na forma de se
pensar tanto o mundo material dentro do qual vivemos e atuamos como a relação
que nós, Seres humanos, estabelecemos individual ou coletivamente com esse
mesmo mundo. O movimento que está acontecendo agora apela por novos
paradigmas, novas categorias de pensamento, novas metodologias de pesquisa,
novas formas de ensino. Muitos dos problemas que a ciência e as técnicas
contemporâneas devem enfrentar não se deixam reduzir ao recorte disciplinar em
função do qual se estruturaram historicamente as instituições de ensino e de
pesquisa. Colaborações impõem-se entre cientistas com formações marcadas por
uma alta especialização. Fronteiras conceituais estabelecidas entre áreas de
conhecimento distintas tornam-se permeáveis. Trocas e ajustes metodológicos são
necessários. O apelo para a colaboração interdisciplinar expressa-se hoje com cada
vez mais força. Pontes são lançadas entre abordagens setoriais da realidade.
Interdisciplinas nascem e acham espaço institucional. As inovações tecnológicas
mobilizam competências oriundas de horizontes científicos longínquos. Apesar
dessa pujante dinâmica histórica, inúmeros obstáculos permanecem. Alguns deles
são expressão de resistências institucionais e de confrontos interpessoais. Outros
originam-se na rigidez intelectual imposta por uma formação acadêmica altamente
especializada. Até hoje, não se encontra uma definição da interdisciplinaridade que
seja consensual, e menos ainda uma doutrina estabelecida que possa ser aplicada
ao trabalho de campo. Torna-se, então, imprescindível contribuir a clarificar as bases
teóricas e metodológicas sobre as quais pode-se construir um projeto de prática
concreta da interdisciplinaridade no domínio do ensino e da pesquisa.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Epistemologia. Ensino superior. Pesquisa.
A questão da necessidade de ultrapassar as fronteiras disciplinares, para
poder conseguir entender problemas do mundo contemporâneo que não se deixam
encaixar em domínios e categorias de pensamento estanques, agita a comunidade
acadêmica e científica em todos os países que desempenham hoje um papel
1 Esse texto retoma, reorganiza e aprofunda algumas ideais já apresentadas em vários textos
anteriores: Raynaut et al., 2002, Raynaut, 2011, Raynaut e Zanoni, 2011. Este texto foi apresentado
oralmente no Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e na
Extensão Região Sul, em Outubro 2013, Florianópolis, SC, Brasil.
2 Doutor em Etnologia e Diretor de Pesquisas no Centro de Pesquisas Científicas da França (CNRS)
da Universidade de Bordeaux, França. E-mail: craynaut@hotmail.com
2
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.1, p. 1-22, Jan./Jun. 2014
significativo na produção do conhecimento. Os cursos de pós-graduação, que
reclamam de uma abordagem inter ou multidisciplinar, multiplicam-se nas
universidades, bem como instituições e programas de pesquisa que reúnem
especialistas oriundos de vários horizontes científicos. Inúmeros são os artigos e os
livros que tratam do assunto.
3 O Brasil pode ser considerado pioneiro nesse
movimento, em particular com a criação, há mais de uma década, de uma ária
interdisciplinar a nível da CAPES: iniciativa que visava encorajar as inovações
pedagógicas que ultrapassam as fronteiras disciplinares e a reforçar sua
legitimidade institucional.
Apesar do caráter extremamente positivo dessa tomada de consciência da
necessidade de inovar na produção e transmissão do conhecimento o pensamento
científico implica num constante esforço de crítica intelectual e de renovação teórica
e metodológica o risco existe, no entanto, de ver a crítica das disciplinas e a
exigência de interdisciplinaridade tornarem-se um novo conformismo institucional,
fator de confusão no modo de se conceber à prática da ciência e as metodologias de
ensino. Além do reconhecimento genérico da necessidade de se repensar um
recorte disciplinar, às vezes demasiadamente rígido nas instituições de formação e
de pesquisa, precisa-se explorar a diversidade de significados, de interpretações
divergentes, que veicula consigo uma mesma noção, uma mesma palavra: a de
interdisciplinaridade. A confusão não nasce da diversidade, quando ela é
devidamente reconhecida e pensada, mas, sim, da incapacidade a identificá-la e
aceitá-la.
Há de se reconhecer em primeiro lugar que uma abordagem integrada da
resolução dos problemas sempre foi aplicada pelas disciplinas técnicas. Desde os
tempos pré-históricos, os gestos técnicos dos primeiros agricultores reclamaram a
combinação de uma grande variedade de conhecimentos e de savoir-faire (know-
how): sobre as plantas, os solos, o clima, as ferramentas utilizadas. A invenção da
metalúrgica, quanto a ela, exigiu também a integração de observações e
conhecimentos muito diversificados para identificar os minerais, explorá-los, fundi-
los e forjar o metal para lhe dar a forma desejada. De modo geral, podemos afirmar
que nenhum processo técnico pode se restringir a um domínio único de
3 Pode-se assinalar, entre tantos outros: Klein, 1996, Origgi e Darbellay, 2010, Repko, 2008, Philippi e
Silva Neto, 2011.

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