Os desafios do envelhecimento para a atenção básica da saúde da família

AutorMaria do Socorro Silva Alencar
CargoUniversidade Federal do Piauí (UFPI)
Páginas11-20

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1 Introdução

O envelhecimento1 é uma preocupação atual na sociedade. O processo vem sendo divulgado e tratado por especialistas de diversos âmbitos disciplinares em decorrência do aumento da longevidade e das condições de qualidade de sobrevida propiciadas pelo desenvolvimento socioeconômico-cultural, progresso científico, da tecnologia em diversas áreas e da significante contribuição da saúde pública, principalmente a partir da segunda metade do século XX (KACHAR, 2003). Embora, parcelas da população idosa não usufruam dessas conquistas seja em relação ao acesso a sistemas de saúde, seja em relação à seguridade social (VERAS; CALDAS, 2008).

Neste contexto, o Brasil também se caracteriza como um país em vias de envelhecimento pelo aumento gradativo no número de pessoas com mais de 60 anos. Estima-se, a partir desse fenômeno, para o ano de 2050, que no Brasil, bem como em todo o mundo, existirão mais idosos que crianças abaixo de 15 anos, uma situação diferente do observado em outras épocas (VERAS, 2003; BRASIL, Ministério da Saúde, 2006a; IBGE, 2007).

No caso brasileiro, o envelhecimento no século XXI constitui-se em um desafio que se correlaciona, de um lado, com o despreparo do Estado, da sociedade e da família para enfrentar e compreender as questões do envelhecimento; do outro, não se possui formação numa ótica humanista de respeito e solidariedade com a pessoa idosa e as demandas próprias da velhice.

Por isso, traçar uma reflexão sobre o envelhecimento e seus desdobramentos para a saúde pública brasileira constitui-se a proposta deste artigo. Tomamos como fio condutor as ações do sistema de saúde com sua Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) a partir da Estratégia Saúde da Família (ESF) que aponta a atenção ao envelhecimento a partir do exercício de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, em um trabalho interdisciplinar que considera o sujeito em sua singularidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural de forma a assegurar a pessoa idosa uma vivência de modo saudável (BRASIL, Ministério da Saúde, 1999; 2006b; 2006c).

Para tanto, embasamo-nos em argumentos políticos, históricos e sociais que de certa maneira apontam para uma avaliação das políticas públicas da atualidade, que anteparam a pessoa idosa e sua família, e também para as do campo da proteção social, onde a saúde é um dos pilares. Inicialmente, o texto tenta mostrar os principais desafios do envelhecimento para o sistema de saúde brasileiro e para as políticas de atenção básica / saúde da família com suas propostas de proteção e promoção da saúde; a seguir, aborda-se o marco conceitual e legal da atenção à pessoa idosa na saúde da família e, por último, tecem-se algumas considerações sobre estes desafios.

2 Os desafios do envelhecimento para o Sistema de Saúde brasileiro

De certa forma, as peculiaridades do envelhecimento vivenciado no país seguem a tendência mundial. No entanto, o processo apresenta-se de forma heterogênea nos estados brasileiros em relação á distribuição de idosos, ao padrão de migração e à ocupação das grandes capitais. Bassit e Witter (2006, p.17) expressam que a transição demográfica ressalta as desigualdades existentes entre os estados brasileiros quanto às condições materiais de sobrevida da população, as diferentes culturas e estilos de vida. As questões impostas por essas desigualdades são cruciais na análise do envelhecimento, em especial quanto às novas demandas do público idoso.

Por outro lado, a transição demográfica se desdobra em uma transição epidemiológica devido às mudanças no padrão de mortalidade da população brasileira, gerando a existência simultânea de diferentes quadros de doenças infecto-contagiosas e doenças e agravos não transmissíveis (DANT). Esse quadro instiga a gestão de novas políticas com seus programas e medidas de promoção de saúde dos diferentes grupos sociais, além de exigir maior esforço técnico-científico dos profissionais do setor sanitário para enfrentaras distintas situações regionais.

A situação do envelhecimento da população brasileira coexiste com mudanças ligadas não somente às melhorias dos níveis de saúde, mas também às mudanças no campo da educação (particularmente o aumento da escolarização feminina), "às mudanças nas relações de gênero com a inserção em larga escala de mulheres no mercado de trabalho, à universalização da seguridade social e, mais recentemente, às mudanças no mundo do trabalho e à crise do welfare state, dentre outras" (KRELING, 2002, p.110).

Essa premissa nos impulsiona a pensar que estamos frente a uma nova conjuntura. No entanto, como afirma Pereira (2001, p.54) é inegável que os fatores e "as condições que contribuíram no século passado para as mudanças do Estado-nação moderno em agente regulador e mediador das relações entre capital e trabalho, bem como garantidor de direitos sociais encontram-se ameaçados".

Na realidade, no campo econômico, todo esse avanço decorre do processo de globalização e de reestruturação do capital, que por sua vez tem afetado a soberania e as decisões do próprio EstadoPage 13 e cujo fator desencadeante de tais mudanças são as forças produtivas (desenvolvimento da maquinaria, novas tecnologias, aperfeiçoamento da educação e modificações fundamentais nas relações trabalhistas), as quais deflagram contradições na economia e nas relações de produção no âmbito econômico, político e social, criando situações-problemas como o envelhecimento da população "que requer a substituição de paradigmas e alterações substanciais nas relações entre capital-trabalho e Estado-sociedade" (PEREIRA, 2001, p.55).

Nesse contexto, o fenômeno do envelhecimento populacional se constitui em questão multifacetada na sociedade contemporânea e urge por enfrentamentos interdisciplinares. Entre as questões de maior relevância, situam-se as do âmbito da Previdência Social e da Saúde, pela repercussão nas políticas econômicas e de assistência social do País, o que para Freitas (2004), servindo-se do estudo de Camarano e Ghaouri (1999), significaria um investimento dos governos na formulação de ações integradas para fazer frente aos aspectos ligados à moradia, à saúde, à nutrição, à educação e à igualdade de oportunidades entre os sexos.

No âmbito da atenção básica, as ações de promoção, embora incipientes, estão sendo impulsionadas pela transição demográfica e epidemiológica, o que levou o Brasil a acolher a saúde da pessoa idosa como estratégia da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) a partir da Estratégia Saúde da Família, em 2006, tomando como norte a Política Nacional de Saúde do Idoso, atualmente Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (BRASIL. Ministério da Saúde, 1999; 2006b; 2006c).

Reconhece-se, também, que estes fundamentos são produtos do campo da saúde pública e dos atores envolvidos neste modelo de assistência. No entanto, vale lembrar que as mudanças no sistema de saúde acompanham o cenário das mudanças da política brasileira no campo da proteção social. A saúde, nos anos 1920-1930, era fruto de uma política sem planificação estatal, "inserida em um projeto político de economia agro-exportadora, exercida por outras instituições como o mercado, a iniciativa privada não mercantil e a polícia (esta última exercia o controle dos problemas emergentes)" (PEREIRA, 2000, p.127-128).

Na era Vargas incorpora o projeto político desenvolvimentista do Estado Novo, como programa federal, fruto da visão sanitarista da época, na qual o combate aos problemas endêmicos oriundos de condições climáticas e genéticas se constituiria no elemento condição para o desenvolvimento brasileiro (GERSCHMAN; SANTOS, 2006).

No período tecnocrático-militar, de acordo com Pereira (2000), de 1964 a 1985, as planificações das ações políticas no campo da saúde são diretivas, racionais e técnicas devido às mudanças no conteúdo do Estado que deixa de ser um estado populista para dar lugar ao aparato tecnocrático e centralizador, marcado pela dominação das elites civis e militares.

No contexto de transição do regime militar para redemocratização do país, se retoma as discussões pela descentralização da saúde do período desenvolvimentista, intensificado pelo movimento da Reforma Sanitária, levando o sistema de saúde a experimentar um importante processo de mudanças nos anos 1980, auge das discussões da participação da sociedade civil como usuária dos serviços (BORGES, 2003).

Este movimento baliza a instituição do SUS, projeto idealizado na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que coloca a saúde numa visão para além da análise setorial, ou seja, alcança toda a sociedade, ou seja, a saúde como direito universal, conforme a promulgação do texto constitucional federal de 1988 (BRASIL. Constituição..., 1988; BORGES, 2003).

Isto posto, a compreensão da estruturação do sistema de saúde brasileiro com suas políticas e programas sociais, advindos de uma tardia reforma sanitária, perpassa pela dificuldade de implementação dos princípios democráticos racionalizadores do SUS numa conjuntura neoliberal e, também, permite detectar a cadeia causal de vários fatores que remontam à estruturação deste sistema, com seu viés de prevenção e promoção da saúde e as mudanças que vem sofrendo, após a Constituição de 1988. Além das dificuldades para adequação do modelo assistencial aos seus princípios reformadores com maior integralidade das práticas e equidade no acesso.

Como atesta Teixeira (1989) as transformações políticas do país teriam levado a inclusão segmentada dos beneficiários dos serviços, considerando que a proteção social na saúde não se orienta pelos princípios da universalização e garantias das necessidades básicas, mas sim "pela diferenciação das categorias de trabalhadores em relação à pauta de benefícios, quase sempre...

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