Desafios do reconhecimento nas relações íntimas: um debate com Axel Honneth

AutorPatricia Mattos
CargoProfessora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
Páginas156-190
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p156/
156156 – 190
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Desaos do reconhecimento nas
relações íntimas: um debate
com Axel Honneth
Patrícia Mattos1
Resumo
Em diálogo com Axel Honneth, analiso os desaos do reconhecimento nas relações íntimas à luz
de pesquisas qualitativas realizadas com homens e mulheres heterossexuais de classes média e
média alta sobre o amor romântico nos dias de hoje. As pesquisas revelaram as ambiguidades que
resultaram do crescente processo de individualização e democratização das relações de gênero
na intimidade. Ainda que o reconhecimento nas relações íntimas seja importante para homens
e mulheres, estas explicitaram, de forma mais enfática, o décit de reconhecimento nessas rela-
ções – não reconhecimento, reconhecimento precário ou falso. Destaco as formas de sofrimento
emocional feminino criadas com a institucionalização do campo sexual, que separou sexo de en-
volvimento afetivo, apontando os dilemas e as contradições da liberdade sexual para as mulheres.
Se, por um lado, a reconstrução normativa das relações íntimas de Honneth consegue elucidar
as regras morais tacitamente postas nas interações amorosas e a importância do amor para uma
teoria moral da “boa vida”, por outro, superestima as potencialidades do reconhecimento na esfera
íntima. Além disso, pretendo mostrar as ambivalências do “novo feminismo” e as limitações dos
estudos de gênero e sexualidade contemporâneos, com ênfase nas sexualidades “não normativas”
e na desconstrução dos binarismos de gênero que, contraditoriamente, contribuem para eclipsar
diferenças de gênero em torno do amor e da sexualidade, e, com isso, acabam colaborando para
tornar imperceptíveis sofrimentos femininos.
Palavras-chave: Amor. Reconhecimento. Ambiguidade. Liberdade Sexual. Feminismo.
1 Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
* Agradeço a Rosinha Carrion, Ricardo Visser e Teresa Santa Cruz pelos comentários e pelas críticas à primeira
versão deste texto.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018
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Introdução
O debate com Nancy Fraser (FRASER; HONNETH, 2003) levou
Axel Honneth a repensar, desenvolver e rever algumas premissas sobre as
quais embasou originalmente sua teoria do reconhecimento. Honneth
percebeu que, na esfera do amor, sua análise foi mais antropológica, dando a
entender que essa dimensão seria a menos sujeita à mudança (MARCELO,
2013, p. 211). Ficou mais claro para Honneth que os padrões de reconhe-
cimento nas relações íntimas podem mudar e progredir tanto em função da
dinâmica interna de institucionalização do princípio do amor – que presume
que as pessoas devam incorporar as implicações normativas desse princípio,
abrindo inclusive espaço para novas reivindicações que podem ampliar as
relações de reconhecimento na intimidade – como também por inuência
de outra esfera, como foi o caso das leis que penalizam o estupro dentro do
casamento ou a violência doméstica (MARCELO, 2013, p. 211-212).
Em seu livro O direito da liberdade2, Honneth (2015) procura superar
o “mal-entendido antropológico” (MARCELO, 2013, p. 210). Para isso,
historiciza e analisa as especicidades das formas de reconhecimento na es-
fera das relações pessoais (de amizade, íntima e familiar). Contudo, arma
não abandonar a intuição antropológica “[...] de que os seres humanos de-
pendem de formas sociais de reconhecimento para desenvolver uma iden-
tidade e para ganhar um certo entendimento e uma suciente forma de au-
torrelação3” (MARCELO, 2013, p. 210). Seu interesse se volta para fazer
uma reconstrução histórico-normativa da nova concepção de amor criada
pelo romantismo, que coloca o amor como um m em si mesmo, livre de
2 Com o método de reconstrução histórico-normativa das três esferas de ação – das relações pessoais (de
amizade, íntimas e familiares), das interações na economia de mercado e da vida política, Honneth afirma
que a liberdade pensada como autonomia individual é o valor central das sociedades liberal-democráticas.
Honneth se preocupa em reconstruir “[...] as práticas constitutivas e negligenciadas de reconhecimento mútuo
e obrigações de papéis complementares” entre os atores sociais nas três esferas (MCNAY, 2015, p. 173).
Identificar as anomias e patologias sociais que comprometem nessas esferas a liberdade social, que significa
fazer dos interesses e necessidades do outro condição da própria liberdade, é a proposta de Honneth para
reavivar a práxis ética. Sobre as críticas feitas à reconstrução normativa, consultar os artigos de Jörg Schaub,
Fabian Freyenhagen, Timo Jütten, David McNeill e Lois McNay, publicados em Critical Horizons, v. 16, n. 2,
2015. Sobre esse debate no Brasil, ver dossiê “Justiça e instituições sociais na democracia”, organizado por
Cinara L. Rosenfield e Emil Sobottka (2015).
3 Esta e todas as citações em inglês foram traduzidas livremente por mim.
Desaos do reconhecimento nas relações íntimas: um debate com Axel Honneth | Patrícia Mattos
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coerções e interesses externos. Nas interações íntimas, Honneth delineou
o caminho de desenvolvimento das relações de reconhecimento recíproco
entre os amantes, demonstrando que somente a partir da revolução sexual
essa concepção de amor, voltada essencialmente para o sentimento e o
desejo sexual dos amantes, foi sendo institucionalizada nas práticas sociais
de homens e mulheres em geral.
Honneth considera as relações sociais afetivas como modelo normati-
vo, como o “epítome das virtudes democráticas” (McNAY, 2015, p. 173).
[...] uma vez que todas as relações baseadas no amor e no cuidar podem ser entendidas, des-
de o início da modernidade, como relações baseadas na ideia normativa de que os indivíduos
se completam reciprocamente para permitir em conjunto a sua própria autorrealização e,
por conseguinte, uma pessoa deveria representar uma condição de liberdade para as outras.
(HONNETH, 2017, p. 117-118).
Em artigo anterior (MATTOS, 2016), estabeleci um debate crítico
entre Honneth e Eva Illouz para discutir os paradoxos da transformação
da intimidade, salientando a necessidade de pesquisas empíricas para ave-
riguação das potencialidades e limitações do reconhecimento nas relações
íntimas. Dando continuidade ao esforço de reetir criticamente sobre essa
questão, concentro-me neste artigo na discussão sobre o tema das rela-
ções amorosas no Brasil. Os estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil
têm se concentrado, notadamente, em sexualidades “não convencionais”,
“não normativas” e “não hegemônicas” (SIMÕES; CARRARA, 2014,
p. 77), em consonância com as lutas feministas e de minorias sexuais pela
desconstrução dos binarismos de gênero. O chamado “novo feminismo
é marcado pela militância jovem e pela diversidade de mulheres – negras,
lésbicas, transexuais, dentre outras. Mesmo sendo fragmentado, polifônico
e permeado de tensões, o ideário do “novo feminismo” radicaliza a críti-
ca ao binarismo de gênero (HEILBORN; O’DWYER; RIBEIRO, 2018,
p. 89). Essa ideia de desconstrução vem sendo colocada como um ideal nor-
mativo4. Mais à frente, comentarei sobre os problemas dessa nova normati-
vidade. Tenho obser vado que, no campo de estudos de gênero, as pesquisas
4 Cf. dossiê da revista Cult “A quarta onda”, publicado em 2016, com o título: “A revolução será feminista,
negra, jovem, vadia, queer, ou não será”.

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