(Des)proteção à saúde do trabalhador: reflexões da atuação dos serviços de medicina do trabalho

AutorSaulo Cerqueira de Aguiar Soares
Páginas283-293

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Saulo Cerqueira de Aguiar Soares1

Considerações iniciais

A área de saúde do trabalhador foi primeiramente formulada em 1700 por Bernardino Ramazzini, ao lançar a obra “Tratado sobre a saúde dos trabalhadores”, com o intuito genuíno de prevenir o trabalhador de adquirir doenças em razão das condições de seu trabalho, sendo essencialmente humanista.

Por sua vez, o primeiro serviço de medicina do trabalho surgiu somente em 1830, no curso da Revolução Industrial, quanto um industrial preocupado com a queda da produtividade em razão dos afastamentos dos trabalhadores, inseriu o médico Robert Baker, esse sim o pai da medicina do trabalho, dentro do estabelecimento empresarial, para prioritariamente proteger a saúde financeira do empregador e, secundariamente, a saúde dos trabalhadores. Assim, a medicina do trabalho, diferentemente da saúde do trabalhador, não apresentou finalidade originalmente digna, pois em verdade, buscava manter a produtividade industrial em detrimento da saúde do trabalhador.

O Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) foi criado em 27 de julho de 1972, por meio da Portaria n. 3.237, pelo então Ministério do Trabalho e Previdência Social (hoje denominado Ministério do Trabalho e Previdência Social). O surgimento do SESMT foi considerado um parâmetro singular, visto que tinha a finalidade de promover e proteger a saúde dos empregados no ambiente de trabalho, adequando-se à efetividade dos preceitos de dignidade da pessoa humana e do trabalho digno, como direito fundamental social.

O SESMT já estava previsto no art. 164 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde 1º de maio de 1943, no entanto só foram disciplinados com a supracitada portaria; o que permitiu que os trabalhadores ficassem por 29 anos sem uma assistência especializada, tendo sido concebido apenas após o Brasil ter alçado o fatídico título de campeão mundial em acidentes do trabalho, na década de 1970.

Com a redação atual, dada pela Lei n. 6.514/1977, o SESMT foi abordado no art. 162 da CLT, passando a determinar que “as empresas, de acordo com as normas expedidas pelo Ministério do Trabalho, estarão obrigadas a manter serviços especializados em segurança e em medicina do trabalho.”

Em sintonia com o exposto, no ano de 1978, a Portaria n. 3.214 do Ministério do Trabalho aprovou as Normas Regulamentadoras, do Capítulo V, Título II, considerando o disposto no art. 200 da CLT; ficando revogada a Portaria n. 3.237/1972, de modo que a partir desse novo marco a abordagem do SESMT ganhou um trunfo, sendo tratada de forma aprofundada na Norma Regulamentadora n. 4 – NR-4.

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Corroborando com o aspecto legal, a Constituição da República de 1988 (CR/88) ampara a atuação do SESMT em seu art. 7º, XXII, visto que determina que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Desta feita, o SESMT caracteriza-se por ser um serviço especializado, com membros, presumivelmente, qualificados para atuarem em operações de saúde e segurança do trabalho. Importante citar que nem todas as empresas estão obrigadas legalmente a constituir o SESMT, pois sua instituição está condicionada à quanti-dade total de empregados do estabelecimento e ao grau de risco da atividade econômica principal ou da ativi-dade exercida de maior grau de risco.

O meio ambiente do trabalho e a subjetividade do trabalhador

A Constituição da República de 1988, em seu art. 225, estabeleceu que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo obrigação do Estado e dos particulares. Em combinação com o art. 200, VIII, se infere que o meio ambiente do trabalho está englobado nesse mandamento, sendo conceituado como um meio ambiente artificial.

Ocorre que, na realidade, o meio ambiente laboral não é tratado com a devida prevenção e precaução, por parte do setor responsável que é o Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT). Destaca Soares (2015) que

[...] observamos que o atual modelo do SESMT com a percepção de que os profissionais estão atuando com autonomia é uma verdadeira ficção, pois a independência funcional, no modelo hodierno, é capenga, de fachada. É preciso tirar o véu com que os executivos, o Estado e até mesmo alguns membros do SESMT cobrem esse assunto, antes que mais trabalhadores sejam vitimados e famílias assoladas. (SOARES, 2015).

Ao que se extrai, ainda não se consegue efetivamente proteger a saúde e segurança do trabalhador. A realidade é que não existe autonomia da equipe de medicina do trabalho para evitar lesões físicas e psicológicas no trabalho.

Não se deveria esperar então que essa medicina do trabalho criada buscasse genuinamente proteger os trabalhadores, pois em verdade essa seção que tanto gerou lucro, era exercida já para controle dos corpos, não visando verdadeiramente à melhoria do meio ambiente do trabalho, mas sim o aumento da produtividade e filtragem dos capacitados para o labor.

Nessas circunstâncias, cabe abordar a subjetividade do trabalhador, diante de que existe uma insatisfação com o “conteúdo significativo” da tarefa, que leva ao sentimento de insatisfação e ansiedade que faz parte do discurso dos trabalhadores. Daí advém a sensação de indignidade operária e inutilidade, pela falta de significação humana do trabalho e desqualificação. Nesse contexto de indignidade, de inutilidade do trabalho e desqualificação emerge a vivência depressiva, exprimida na forma de cansaço. (DEJOURS, 1992).

O homem tem uma relação com o “conteúdo significativo” do seu trabalho, nos sentidos subjetivo e objetivo; influenciado na criação da autoimagem, do narcisismo. O sujeito possui relações com o trabalho que envolvem a saúde mental e não podem ser respondidas pela psicopatologia do trabalho (PPT). A organização do trabalho pode gerar a insatisfação, pelos conflitos com as motivações do trabalhador. Essa relação homem-organização se bloqueada gera o sofrimento, quando do fim das estratégias defensivas (ED). (DEJOURS, 1992).

A insatisfação no trabalho por causa do conteúdo ergonômico tem influência com as aptidões e desejos do trabalhador. Verifica-se que o trabalhador busca satisfações concretas e simbólicas, que quando corrompidas afetam a relação saúde-trabalho. (DEJOURS, 1992).

Evidencia Seligmann-Silva (2011), sobre a linha criada por Dejours, que a PDT (psicodinâmica do trabalho) trouxe, ainda, subsídios a diferentes estudos que mostram de que forma a aparente normalidade é um manto de conformidade tecido conjuntamente por duas forças engendradas na empresa moderna e contidas nas mensagens ambíguas que esta lança aos empregados para obter sua cooptação: a sedução e a intimidação. (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 78).

É justamente usando da sedução e intimidação que se consegue dos trabalhadores o respeito pela hierarquia. Além disso, o medo é gerado pelo receio de acidentes, muitas vezes fatais, mas também pela possibilidade de perder o emprego e o sustento das famílias.

As consequências de todas as atitudes de defesas, dos medos, tendo em vista o receio do indivíduo de perder o sentimento de utilidade social, é a geração de doenças mentais, algumas vezes não diagnosticadas pelos profissionais da saúde, que podem configurar o

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dano existencial, seja pela preocupação do trabalhador em se abrir ao profissional médico ou pela atitude desse profissional que deseja apenas que o trabalhador retorne ao trabalho para que as metas sejam alcançadas, visto que ele também está em risco de perder o emprego, em um ambiente que não reconhece a garantia provisória de emprego ao profissional do SESMT, violando o art. 10 da Convenção n. 161 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A garantia provisória de emprego para o médico do trabalho

Após a análise enveredada, é preciso debater a construção de novos caminhos do SESMT, diante das condições patológicas que vem sofrendo, (re)pensando sua atuação e sua capacidade de alcançar seus verdadeiros objetivos, de promover a saúde e proteger a integridade do trabalhador no local de trabalho. Lamentavelmente, os membros do SESMT estão acorrentados em suas ações, diante da falta de independência funcional de seus empregadores, o que vem provocando prejuízos aos trabalhadores, que não têm o direito de ter uma equipe de saúde e segurança do trabalho com garantia de desembaraço.

O atual cenário do SESMT é patológico, de fato doente e sem remédio. São inúmeros os desafios para que esse serviço seja mais efetivo, na proteção dos trabalhadores, visando evitar que os acidentes de trabalho continuem ocorrendo, ampliando a fila dos incapacitados e os corredores dos tribunais.

No cotidiano empresarial, o SESMT esbarra rotineiramente nos problemas ligados à gestão inadequada, com excesso de chefes e carência de líderes, sendo essa uma frente de trabalho árdua, que depende muito pouco dos profissionais do SESMT, que encontram-se impotentes, pois, em regra, não depende deles a ação efetiva no meio, já que é preciso comprometimento da alta gerência com a solução dos problemas que vêm causando sobrecarga nos trabalhadores.

Diante do exposto, observamos que o atual mode-lo do SESMT com a percepção de que os profissionais estão atuando com autonomia é uma verdadeira ficção, pois a independência funcional, no modelo hodierno, é capenga, de fachada. É preciso tirar o véu que os executivos, o Estado e até mesmo alguns membros do SESMT cobrem esse assunto, antes que...

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