As (des)analogias entre racismo e especismo

AutorCarlos M. Naconecy
CargoFilósofo pela UFRGS e doutor em Filosofia pela PUCRS
Páginas169-208

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1. Introdução

Uma revisão abrangente da literatura em Ética Animal (e dos manifestos ativistas do movimento de Libertação Animal / Direitos dos Animais) mostraria que o esqueleto lógico e retó-rico da defesa moral dos animais não-humanos envolve basicamente dois movimentos argumentativos. O primeiro deles, o Argumento dos Casos Marginais, é reativo. O segundo, de teor propositivo, objeto do presente ensaio, é uma instância do argumentum per analogiam. Tal argumento evoca a semelhança moral entre um raciocínio ou uma atitude racista, de um lado, e um preconceito especista, de outro. Trata-se, com efeito, de moeda corrente no debate em Ética Animal e está presente praticamente em todos os trabalhos nessa área.

Entende-se como especismo a discriminação preconceituosa baseada na noção de espécie (biológica), notadamente contra os animais (não-humanos), acarretando sua opressão. O termo especista foi cunhado para comunicar a ideia de que os praticantes do especismo exibem uma insensibilidade moral tão ou mais tosca e brutal que a dos racistas.

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Pesquisadores e ativistas da defesa animal tomam como fortemente intuitivo e saliente um paralelismo moral entre especismo, racismo, sexismo e outros "-ismos", que, não obstante, é passível de uma análise mais refinada. Pelo bem da simplicidade, neste trabalho, limitaremos a analogia ao caso do racismo, embora o argumento analógico se aplique também às situações sexistas, elitistas, nacionalistas e muitas outras semelhantes. Veremos, portanto, quais são os aspectos compartilhados e quais são as principais assimetrias entre essas duas formas de discriminação preconceituosa. Em outras palavras, em que, analiticamente, o preconceito racista e o especista se aproximam e se separam em termos morais.

O argumento em tela é o seguinte: (i) O racismo é errado, os racistas são imorais e as atitudes racistas são injustas. (ii) Ora, o especismo é análogo ao racismo: ambos tratam de modo moralmente diferente indivíduos que são semelhantes nos aspectos moralmente relevantes - baseados (no primeiro caso) na espécie biológica da criatura e (no segundo) na raça da pessoa. (iii) Logo, o especismo também é moralmente condenável.

Todo o esforço eticista nessa argumentação consiste em trazer à luz o que há de comum nas discriminações racistas e especistas, demonstrando, assim, que a opressão a pessoas de outras raças e a opressão a animais estão conceitualmente vinculadas de forma logicamente paralela. A questão aqui é a seguinte: são eticamente corretas aquelas práticas "facialmente neutras", que, por não fazerem referência à raça dos envolvidos nem à sua cor, não são discriminatórias? Se sim, então serão eticamente corretas também aquelas ações "zoologicamente neutras", que não dependem do fato de que os pacientes dessas ações têm pernas, patas ou asas. Devemos notar, primeiramente, que a analogia estrutural entre racismo e especismo não é evidente para a grande parte das pessoas, uma vez que, supostamente, a maioria dos antirracistas não são também antiespecistas.1Comecemos nossa análise da validade do argumento analógico lembrando que o argumento que compara racismo e especismo não basta por si

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só. Essa comparação não prova que o especismo é errado - até que se mostre por que o racismo também é errado. E por que o racismo é errado em termos morais?

2. Especismo é análogo ao racismo .. Mas o que há de errado no racismo?

A resposta à pergunta anterior - por que o racismo é errado? - é conhecida: raça é uma classificação biológica que diz respeito ao aspecto corporal visível de um individuo e que não envolve sua capacidade de ser prejudicado ou beneficiado, vale dizer, seus interesses, necessidades, desejos e bem-estar básicos. Esse fato, como salienta Paola Cavalieri2, determina a priori que "raça" não pode desempenhar um papel direto em ética, tanto quanto a função reprodutiva ou a estrutura genital também não o podem em uma moral sexista.

Historicamente, teses racistas foram usadas à larga para justificar a escravidão negra e o holocausto judeu. O pensamento racista forneceu até o final do século XIX um suporte a políticas imperialistas e ao poder colonialista. O racismo ainda se reflete concretamente nas políticas do apartheid, nas doutrinas da superioridade racial anti-semitas e nos movimentos de protesto anti-imigrantistas. A despeito do conceito de raça estar hoje cientificamente desacreditado, ele ainda exerce uma forte influência ideológica e é amplamente utilizado na linguagem cotidiana.

Um dos primeiros teóricos a popularizar o termo "racismo" foi a antropóloga Ruth Benedict na obra Race and Racism, definindo-o como "o dogma de que um grupo étnico está condenado por natureza à inferioridade congênita e outro grupo à superioridade congênita".3Racismo - como o especismo - constitui um processo de alocação de status moral, no qual há desvalorização, desconsideração e degradação de indivíduos em virtude de serem categorizados como pertencentes, ou não pertencentes, a uma determinada classe.

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Semelhantemente ao especismo, o racismo pode apresentar uma versão superficial ou qualificada.4Na primeira modalidade, os atributos corporais são considerados índices morfológicos da pertença à raça, a qual se submete a uma hierarquia de natureza moral. O racismo superficial opera uma discriminação com base na pigmentação da epiderme, formato do crânio, da pálpebra ou de algum outro atributo externo qualquer. Ora, esses atributos são tão irrelevantes para as capacidades individuais, tais como ser um bom cidadão, um bom vizinho ou um bom ser humano, quanto a calvície de uma pessoa também o é para fins das suas aptidões humanas. Com efeito, se a cor escura da pele de uma pessoa fosse importante para estabelecer seu status moral, então uma pessoa branca tão bronzeada a ponto de parecer negra teria o mesmo status da primeira.

A versão superficial do racismo foi aquela que, por exemplo, pautou a relação entre os navegadores europeus e os índios no continente americano. No caso da escravatura negra (para nos limitar ao exemplo ocidental mais óbvio), o raciocínio superficial do racista poderia ser o seguinte: (i) Pessoas brancas e pessoas negras são visivelmente diferentes. (ii) Sabe-se que os brancos têm pensamentos sofisticados, ideais nobres, consciência moral, etc. (iii) Logo, os negros não estão naturalmente equipados para as ciências, artes, política, etc.

Importa notar que não é essa versão do racismo que deve receber a atenção por parte da Ética Animal. Raras pessoas acre-ditam que, pelo simples fato de que a pele branca e a pele negra têm diferentes cores, pessoas brancas e pessoas negras são diferentes tipos de pessoas nos aspectos mais relevantes. Em outras palavras, as modalidades superficiais do racismo e do especismo não são as mais importantes para o animalismo, em virtude de serem estatisticamente incomuns nos dias de hoje. Atualmente, poucos ainda abraçam a idéia de que a cor da pele define diretamente o status moral de uma pessoa - tanto quanto poucas pessoas ainda crêem que ter quatro patas é o fato relevante para não se receber respeito moral. Com efeito, seria

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algo bastante raro encontrar um especista que afirmasse que o número de patas dos animais, por si só, justifica a escravatura animal. Geralmente racistas e especistas não consideram a raça ou a espécie como um fator negativo ou desqualificador de per si. Uma pessoa branca racista, em vez de dizer "eu não gosto de negros porque são negros", racionalizará sua aversão ao grupo racial, evocando traços ou qualidades supostamente associados à negritude, tais como indolência, criminalidade, promiscuidade e outros.

Passemos agora à modalidade qualificada do racismo e, correspondentemente, a do especismo. Ao ser criticado de que a cor da pele ou a forma facial é um critério arbitrário ou irrelevante para o direito a ser livre, um racista pode conceder que apelar à raça não oferece mesmo um critério comparativo direto de status moral. Ele poderia objetar, entretanto, que há uma correspondência entre características fenotípicas e a presença/ausência de capacidades moralmente relevantes. Diria ele que a cor da pele de alguém é apenas um indício, um sinal, um índice das capacidades inferiores da pessoa envolvida pela epiderme daquela cor. Deste modo, a pertença à raça seria um modo econômico de marcar indiretamente essas diferenças de capacidades: pessoas negras são intelectualmente menos hábeis, menos sensíveis ou menos virtuosas. O racista acrescentaria em seguida que tais atributos psicológicos são, sim, moralmente relevantes.

Na versão qualificada do racismo, em suma, não são as características morfológicas que constituem o foco da discriminação. O racista, neste caso, crê que a natureza, a essência ou a identidade imperfeita do "outro" é tanto responsável por essas marcas físicas superficiais quanto por incapacidades e desqualificações congênitas...

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