O Depoimento Sem Dano Como Instrumento de Humanização da Justiça

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I Considerações iniciais

A Constituição Federal de 1988, estruturada dentro de um pensamento modernista, deixou de ser um diploma político para ser um pacto de cidadania, até de certo modo prolixo, preocupando-se com os direitos humanos em todas as suas dimensões.

Com efeito, a ordem constitucional atual veio consagrar os direitos da criança e do adolescente como direitos fundamentais, consoante refere o seu art. 227, que estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Lei 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, regulamentando o art. 227 da lex fundamentalis de 1988, mudou a ótica com que devem ser vislumbradas crianças e adolescentes. Estas, que eram vistas na doutrina da situação irregular, são hoje reconhecidas como sujeitos de direitos civis (art. 15, ECA).

Quando a criança ou adolescente é vítima de abuso sexual, nem sempre é possível extrair dela alguma informação em juízo, seja por vergonha ou por medo de represálias, tendo em vista que o abusador pode ser uma pessoa muito próxima da família ou até mesmo um familiar.

Neste sentido, o Poder Judiciário tem se mobilizado para adequar as suas instalações e capacitar os seus profissionais (magistrados e equipe multidisciplinar), com o intuito de transmitir segurança e acolhimento às vítimas de abuso sexual no momento do depoimento e para que o autor do delito seja efetivamente punido, preservando assim a paz e a ordem social. É o caso do depoimento sem dano, que tem como desiderato obter o depoimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual através de profissionais capacitados, em um ambiente acolhedor e confortável, respeitando, dessa forma, a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e seres humanos em desenvolvimento.

Portanto, o presente estudo, aliado à nossa experiência profissional à frente de uma vara de infância e juventude, visa fazer um breve ensaio sobre o depoimento de crianças e adolescentes que foram vítimas de violência sexual, apontar os principais benefícios da utilização da técnica do depoimento especial, elencar medidas que podem ser adotadas por magistrados atuantes em comarcas que não possuem equipe multidisciplinar ou interprofissional e apresentar soluções para o aprimoramento dos métodos utilizados atualmente no depoimento de crianças e adolescentes.

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II Análise do tema

É cediço que não há um princípio da dignidade humana para as crianças e outro para os adultos, mas no caso das crianças e adolescentes é dever de todos velar pela sua dignidade, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (art. 18, ECA)1.

O abuso sexual é uma das formas mais cruéis de maus tratos infantis, porque, além de afetar fisicamente a criança ou o adolescente, destrói todo o sentimento de pureza e dignidade que ela possui. Poder-se-ia analisar o abuso sexual como espécie de maltrato físico, ou, ainda, como espécie de maltrato emocional. A verdade é que a agressão de natureza sexual tem consequências sérias no desenvolvimento da criança e do adolescente, bem como os atinge tão completamente – física, psíquica e emocionalmente – que o seu estudo merece relevo2.

No vigente sistema inquisitório, os esforços costumam concentrar-se na investigação do crime e na punição do agressor, despreocupando-se com o sofrimento e as...

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