Direito à segurança pública no Estado Democrático de Direito: uma releitura à luz da teoria discursiva

AutorGustavo A. Paolinelli de Castro
CargoPesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da Pontíficia Universidade Católica de Minas Ge-rais (NUJUP/PUC Minas). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Castilla-La Mancha, Toledo, Espanha. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) Professor de Direito das Faculdades de Direito
Páginas70-84

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1. Introdução

Já faz algum tempo que se vem desenhando no Brasil, seja no âmbito da prevenção ou da repressão, um Estado Penal (WACQUANT, 2001) cada vez mais amplo e ilimitado. A disseminação de aparatos de segurança, como a implementação indiscriminada de câmeras pelos centros comerciais das cidades (CASTRO, 2007), a utilização repressiva do Ministério Público como órgão de cobrança2,e o alargamento dos poderes investigatórios da polícia são indícios substanciais nesse sentido3.

Não é preciso muito esforço, pois, para notar que entre a segurança pública e os demais direitos fundamentais têm se estabelecido uma visível situação de privilégio, ou seja, declaradamente a segurança pública passa a ter maior "prestígio" em detrimento de outros direitos4. Page 71

Ocorre que, nos termos de um paradigma jurídico do Estado democrático de Direito, tal pretensão se apresenta como medida alheia à construção de uma cidadania ativa e em sintonia com a consolidação da legitimação das decisões no âmbito da segurança pública.

Nesse sentido, este artigo pretende analisar o lugar da segurança pública sob a ótica de uma teoria procedimentalista que seja capaz de atribuir uma adequada noção aos princípios constitucionais, de modo a garantir que tanto discursos de justificação/fundamentação como os de aplicação não desvirtuem os direitos fundamentais em valores, convertendo a Constituição numa ordem materializada e petrificada de preferências.

2. Qual o problema em se compreender a segurança pública como um superprincípio?

Como já se afirmou anteriormente, a segurança pública tem ganhado cada vez mais o status de um metaprincípio, ou seja, tem sido freqüentemente convertida num direito fundamental "mais fundamental" que outros.

Nesse processo de regressão das conquistas alcançadas pelo constitucionalismo moderno, notadamente em relação aos abusos cometidos pelos Estados absolutistas, o que se observa é uma retomada do ponto zero do direito à liberdade a partir da sublimação da segurança e da ordem total, como fator de negação contemporâneo do Estado de Direito democrático.

quando o dever estatal de proteção do cidadão é alçado à condição de 'ga-rantia supraconstitucional', que está acima dos princípios e garantias constitucionais, constitui-se o Estado de segurança, que é a negação do Estado de Direito (KRAUS, apud DIAS NETO, 2005, p. 93)

Além dessa grave constatação, outras poderiam ser igualmente levantadas. Isto é, a elevação do direito à segurança pública ao nível de um superprincípio, como será analisado, pressupõe não só um modelo hermêutico ultrapassado e inadequado dos direitos fundamentais mas, igualmente, um atentado aos objetivos de uma cidadania ativa e participativa, próprias de um modelo democrático. Page 72

Vale lembrar que a experiência da iconização de um princípio como vetor máximo de uma dada ordem constitucional não é novidade na his-tória do constitucionalismo. Esse fenômeno, já presente na Alemanha do pós-guerra, encontrou guarida num movimento hermenêutico alcunhado de "jurisprudência de valores" da Corte constitucional daquele país, como meio de corrigir os abusos cometidos pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.(CRUZ, 2004)

Atribuindo ao princípio da dignidade humana o "valor máximo" da ordem constitucional, o Tribunal Constitucional alemão buscou traçar um rol axiológico de direitos5 que fossem universalmente tutelados. Assim, as garantias que mais se aproximassem da noção material desse princípio teriam maior prestígio quando da aplicação da norma. Eis o que hoje parece estar acontecendo, em alguma medida, com a segurança pública.

Ao se atribuir peso máximo a um princípio constitucional, não há dúvidas que se está caminhando para uma noção axiológica da Consti-tuição, na qual o princípio da segurança pública passa a ser tão (equivocadamente) valorado quanto o próprio princípio da dignidade da pessoa humana no movimento da Jurisprudência de Valores.

Essa postura, como lembra Cruz, levaria a uma série de atentados à Constituição dentre os quais merecem destaque:

  1. desnaturação do princípio da separação dos poderes; b) limitação da supremacia constitucional, pela transformação dos Tribunais Constitucionais em Assembléias Constituintes; c) desnaturação dos direitos fundamentais e da unidade normativa da Constituição; d) politização do Judiciário, por meio de decisões utilitárias de custo benefício sociais; e) a decisão tornarase campo para arbítrio puro, de preferências pessoais dos juízes; f) irracionalidade metodológica. (CRUZ, 2004, p. 195)

É claro que ao comparar a ênfase dada ao princípio da segurança pública e a mitificação do princípio da dignidade da pessoa humana pela Jurisprudência de Valores não se pretende dizer que o Supremo Tribunal Federal tenha se transformado na Corte Constitucional alemã no pósguerra. Esse cotejo, é importante ressaltar, é apenas emblemático para demonstrar quais os males de um modelo interpretativo pautado na ico- Page 73nização de um princípio. O problema, pois, não reside necessariamente no momento de aplicação da norma pelos tribunais, mas notadamente no momento da sua fundamentação/justificação no processo legislativo.

Mas o que significa, então, dizer que o problema da interpretação da segurança pública está mais presente no momento de justificação que no instante de aplicação normativa?

Para responder a essa pergunta reputa-se necessário fazer, inicialmente, um breve retrospecto da teoria dos direitos fundamentais no Brasil, segundo a concepção de Alexy. Essa reconstrução, é coerente esclarecer, se dá por dois motivos: (i) primeiro porque a teoria alexyniana é indubi-tavelmente a mais utilizada (e má utilizada, é preciso ressaltar) pelos aplicadores do Direito no Brasil, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal; (ii) a segunda razão está no fato de que, é a partir das críticas à teoria de Alexy (mas não só a ele) é que se pretende analisar como a teo-ria discursiva buscaria superar essas incoerências no modo de se pensar e efetivar o direito à segurança pública.

(i) Inicialmente, é preciso registrar que Robert Alexy se apropriou de alguns critérios hermenêuticos da Corte alemã para criar seu modelo de interpretação dos direitos fundamentais. Foi a partir da revisão daquele, pois, que o professor de Kiel reviu a sistematização até então utilizada, para dizer que os princípios não poderiam pretender ter uma precedência básica entre si.

Tentando superar o equívoco da interpretação dada pela Corte alemã, o referido autor passou a sustentar a inexistência de princípios absolutos. Embora tenha reconhecido que efetivamente o princípio da dignidade da pessoa humana provoque uma idéia de sentido absoluto (a exemplo do que poderia sugerir o inciso III, artigo primeiro da Constituição de 1988), essa noção não passaria apenas de uma alta probalidade de precedência daquele em relação aos demais direitos.

A razão dessa impressão residiria no fato de "que para o princípio da dignidade da pessoa existe um amplo grupo de condições de prece-dência nas quais existe um alto grau de segurança acerca de que sobre elas o princípio da dignidade da pessoa precede aos princípios opostos." (ALEXY, 2002, p. 106, tradução nossa).

Corrigindo, portanto, as deficiências do modelo interpretativo da "juris-prudência de valores" Alexy apropria-se da crítica de Kloepfer ao dizer que "'uma dignidade da pessoa que se imponha em todas as circunstâncias frente Page 74 a todos os demais princípios constitucionais' reduziria 'em última instância a garantia da dignidade da pessoa [...] à defesa contra a depreciações apocalíp-ticas'" (KLOEPFER apud ALEXY, 2002, p. 108, tradução nossa).

Nesse contexto, Alexy pretendia demonstrar que eventual "choque" entre garantias constitucionais (direito à segurança pública e direito à intimidade, p. ex.) deveria ser resolvido pela "lei da ponderação" e de acordo com o "princípio da proporcionalidade." (ALEXY, 2004)

A "lei da ponderação," segundo o jurista alemão, poderia ser formulada da seguinte maneira: "cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del outro. [...] La ley de la ponderación dice [...] que el peso de los princípios no es determinable em si mismo o absolutamente, sino que siempre pude hablarse tan solo de...

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