A democracia sem espera: constitucionalização e transição política no Brasil

AutorMarcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Páginas97-133
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A DEMOCRACIA SEM ESPERA:
constitucionalização e
transição política no Brasil1
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira2
Para Giacomo Marramao
“De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando
(Vinicius de Moraes)
1. A versão original deste texto foi escrita durante o estágio pós-doutoral com bolsa da
CAPES na Università degli studi di Roma TRE, entre setembro de 2008 e fevereiro de
2009, com a colaboração e a interlocução de Giacomo Marramao.
2. Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágio de Pós-doutorado
CAPES em Teoria (e Filosoa) do Direito (Università degli Studi di Roma TRE).
Professor Associado IV do Departamento de Direito Público e Subcoordenador do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG.
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Justiça de transição em perspectiva transnacional
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Na presente reexão, retomo o tema do processo de constitucionali-
zação do Estado Democrático de Direito e da sua legitimidade. Pro-
ponho, pois, uma reconstrução do sentido normativo que se autoex-
pressa no exercício democrático do poder constituinte como poder
comunicativo e que se desdobra ao longo do tempo por meio de um
processo de aprendizado histórico, não linear e sujeito a tropeços.
Tal reconstrução é introduzida contra toda visão teológico-política
que compreende esse exercício do poder constituinte a partir das
teorias da soberania.
Se, como sugere Habermas, em razão do caráter histórico
de uma constituição democrática e de suas relações com o tempo,
teríamos de partir de nossa própria práxis de autodeterminação
política caso queiramos compreender “o que tal prática signica
em geral” (1998, p. 468), sigo tal sugestão, embora num sentido es-
pecíco, e proponho contribuir para uma reexão acerca do senti-
do normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação
política no constitucionalismo democrático, por meio de uma re-
construção acerca do modo como a Constituição brasileira, a co-
meçar pelos seus primeiros vinte anos, articula memória e projeto,
experiência e expectativa – e, assim, deixa entrever as suas relações
com o tempo histórico.
Mas, para seguir a sugestão de Habermas, cabe considerar
desde já que não me importa aqui desenvolver uma teoria normativa
do porquê do Estado Democrático de Direito existir ou não, a par-
tir de uma discussão, por exemplo, sobre pretensos “fundamentos
pré-políticos do Estado Democrático de Direito” (BÖCKENFÖR-
DE, 2006, p. 113-144; BÖCKENFÖRDE, 2007, p. 33-54; HABER-
MAS, 2005, p. 5-18). Essa discussão, diga-se de passagem, por si só,
já exigiria uma crítica não apenas quanto à perspectiva desencami-
nhante com que foi introduzida, mas também quanto à própria con-
cepção habermasiana de “sociedade pós-secular” (cf. MARRAMAO,
2008a, p. 206-221) – que pode colocar em risco a tese fundamental
para uma teoria discursiva do direito e da democracia segundo a
qual, “sob o signo de uma política integralmente secularizada, não se
pode ter ou manter um Estado de Direito sem democracia radical”
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Justiça de transição em perspectiva transnacional
(HABERMAS, 1998, p. 61), na medida em que Habermas passa a
atribuir à religião um papel privilegiado, não apenas o de partícipe,
ao lado da metafísica destranscendentalizada, na “genealogia do
racionalismo ocidental e de um pensamento pós-metafísico”, mas
enquanto “fonte normativa inesgotável para a deliberação pública”
(HABERMAS, 2005, p. 5-12, p. 5-18).
Como diria Wittgenstein (apud MARRAMAO, 2005, p. 76),
“àquilo que se pode alcançar por uma escada não me interessa [...]
De fato, para onde devo realmente dirigir-me, lá devo em realidade
já estar.” O que me interessa, aqui, é propor uma espécie de desloca-
mento lateral (MARRAMAO, 2005, p. 89) de tal questão normativa
sobre o “fundamento, no sentido de que cabe contribuir, em última
análise, para a pergunta, não de um pretenso por que, mas sim do
como, de que modo, o Estado Democrático de Direito e a sua existên-
cia, e não qualquer outra forma de legitimação política, se tornaram
não apenas possíveis mas exigíveis – e somente assim justicáveis
– historicamente, assumindo-se a perspectiva do participante de
um processo não linear e descontínuo de aprendizado social com o
Direito, que se desenvolve, ao longo do tempo, de construção dinâ-
mica, polêmica, conituosa e, portanto, rica e plural, de uma iden-
tidade constitucional democrática, não-idêntica e não-identitária,
múltipla e aberta.
Em outras palavras, o que me interessa aqui é propor uma re-
construção de partes da história constitucional brasileira recente – e
ainda por fazer –, a partir de uma crítica aos discursos “ociais” so-
bre a transição política no Brasil, do resgate da memória do processo
constituinte brasileiro de 1987-88 e do seu projeto de legitimidade,
procurando “reconstruir fragmentos de racionalidade” (Habermas,
1998, pp. 363-364) já presentes na história constitucional brasileira,
para além do discurso autoritário da democracia possível (FERREI-
RA FILHO, 1977a, 1977b, 1979, 2001, 2007), e não apenas no senti-
do do reconhecimento de uma democracia inesperada (SORJ, 2004),
mas na perspectiva da tese da democracia sem espera e de um tempo
cairológico da constituição como processo de constitucionalização, a
m de, em última análise, contribuir para uma reexão acerca do
sentido normativo – que se autoexpressa – da práxis de autodeter-
minação política no constitucionalismo democrático.

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