Democracia, Participação e Cidadania

AutorOcimar Barros de Oliveira
Ocupação do AutorAdvogado, professor de Direito
Páginas107-128

Page 107

Os entes estatais (União, Distrito Federal, Estados e Municípios) são regidos hodiernamente por uma gama de princípios e regras que visam dar maior transparência, publicidade e, principalmente, moralidade aos atos administrativos em geral.

O processo administrativo, outrora de existência duvidosa, hoje é aceito como lastro necessário para os atos administrativos que do mesmo advêm. Assumindo importância maior ainda com a promulgação da novel Carta Constitucional, que exige dos entes estatais maior seriedade ao lidar com a res pública.

Todos os atos praticados devem ser lastreados, assumindo responsabilidade sobre eles o ente estatal ou entidade administrativa, além do servidor público que os praticou, em qualquer esfera administrativa.

Ademais, os princípios norteadores da Administração Pública, insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal, que são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, somados a outros, adicionados pela Lei 9.784/99, a saber: finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica e interesse público, vieram a exigir da Administração Pública uma atenção maior ao processo administrativo como lastro dos atos por ela proferidos.

Na Carta Magna encontram-se os princípios da ampla defesa e do contraditório, no art. 5º, LV, como garantias aos litigantes em processos judiciais ou administrativos.

Page 108

A esse respeito, diz o professor Luiz Carlos Figueira de Melo:

A Administração Pública, para cumprir seus fins, deve dinamizar o exercício da função pública, com respeito aos direitos dos administrados, valendo-se da processualidade como vetor garantidor desta possibilidade. Somente o processo dotado dos princípios do contraditório, ampla defesa, eficiência e os demais elencados no ordenamento jurídico se mostra apto a sintonizar o cumprimento dos fins do Estado com a garantia de resguardo dos direitos dos administrados.79

Na mesma esteira, Robertônio dos Santos Pessoa, em seu texto “Processo Administrativo”, enfatiza tal importância:

O processo administrativo deve observar as seguintes exigências básicas:
a) publicidade do procedimento; b) direito de acesso aos autos; c) observância do contraditório e da ampla defesa, sempre que haja litigantes (CF, art. 5º, LV); d) obrigação de motivar; e) dever de decidir (ou condenação do silêncio administrativo).80Percebe-se, pela análise das citações dos autores acima, a importância dos princípios reitores da Administração Pública, insculpidos na Carta Magna, bem como aqueles explicitados na legislação infra-constitucional (em especial a Lei 9.784/1999, Lei do Processo Administrativo Federal) que, adicionados aos princípios constitucionais da Administração Pública, orientam o processo administrativo.

2. 1 Processo e procedimento administrativo

Sempre que se falava em “processo” vinculava-se a esse instituto uma conotação de exercício da função do Poder Judiciário. Embora parte dos juristas ainda rechace a existência do processo administrativo, esse fato nos remete a debate que não implica apenas mera preferência terminológica; envolve um conjunto de estudos jurídicos em que cada

Page 109

jurista apresenta sua exposição de motivos para justificar a adoção de uma ou outra nomenclatura.

Os países europeus, entre eles Portugal, Espanha, Itália e Alemanha, adotam a denominação procedimento administrativo, deixando reservada a expressão processo administrativo para aqueles que se desenrolam perante os tribunais encarregados de resolver os litígios jurídico-administrativos81.

Em Portugal, Pedro Machete82afirma que a CRP/1976 se encarregou de pacificar a dúvida, entendendo tratar-se de procedimento administrativo aquele desenvolvido junto à Administração no desempenho de função administrativa, tendo sido elaborado um Código de Procedimento Administrativo.

Entre os juristas nacionais tem preponderado a locução “processo administrativo”, na quase unanimidade; contudo, cabe fazer menção a posicionamentos distintos.

Entre aqueles que apresentam opção pela expressão “procedimento administrativo” encontra-se Luísa Cristina Pinto e Netto, que recebe influência dos estudos decorrentes de seu doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Portanto, seguindo a tendência europeia, mencionada autora assim se posiciona:

Assim, à luz da peremptoriedade da adoção da nomenclatura constitucional, reforçada por sua imprecisão técnica e pela necessidade de interpretação sistemática, importa dizer que a utilização da expressão “processo” tem levado a uma compreensão incoerente e mutilada do fenômeno da procedimentalização da atividade administrativa, dando-se ênfase à feição “adversarial” e aproximando o procedimento demasiadamente do modelo processual.83

Page 110

Com todo respeito que merece a autora, se a preferência pela expressão procedimento visa evitar a feição “adversarial”, tal justificativa se torna tênue e facilmente contestável no ordenamento pátrio, tendo em vista dois motivos que a suplantam: primeiramente, não se pode sustentar que a processualidade está afeta somente às atividades judiciárias; em segundo lugar, não há mais como se conceber o processo, em qualquer de suas vertentes, como ambiente adversarial, mas antes em ambiente cooperativo, em homenagem aos princípios da participação, da boa-fé objetiva e da solidariedade, como salientado no item 1.7.8 supra.

Outro posicionamento que merece apreciação é o de Bandeira de Mello, que optou por utilizar indistintamente “processo” e “procedimento” administrativo:

Quanto a nós, tendo em vista que não há pacificação sobre este tópico e que em favor de uma milita a tradição (“procedimento”) e em favor de outra a recente terminologia legal (“processo”), daqui por diante usaremos indiferentemente uma e outra.84Na mesma linha de raciocínio encimada, pode-se acrescentar o entendimento expressado por Calamandrei, que deu importância secundária a tal discussão, alegando que embora tenham significados técnicos diferentes uma e outra expressão poderia ser utilizada85.

Acredita-se que a adoção pela quase unanimidade dos juristas brasileiros da locução “processo administrativo” está em consonância com a CRFB/88 e com a Lei 9.784/99, pelos motivos já esposados no presente trabalho. Some-se, a tudo que foi mencionado, o fato de que o direito europeu tem motivos suficientes para adotar procedimento e não processo administrativo, haja vista a existência em alguns países, como na França e em parte da Itália, de tribunais encarregados de jul-

Page 111

gar especificamente causas administrativas, proferindo decisões com força de coisa julgada, devido à adoção do sistema da dualidade de jurisdição.

No Brasil, até o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o Estado Social e Democrático de Direito, depois reforçada pela edição da Lei 9.784/99, intitulada por alguns administrativistas como a Lei Geral do Processo Administrativo, o enfoque doutrinário do Direito Administrativo pautava-se por exaustivos estudos sobre o ato administrativo.

A partir de então os estudos se voltaram para a processualidade administrativa, haja vista que a mesma está intimamente ligada ao exercício das funções estatais dos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário).

A Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LIV, veio garantir uma processualidade tanto judicial quanto administrativa e, por que não dizer, legislativa, pautada pelo devido processo legal (due process of law), além de garantir, no inciso LV do mesmo artigo 5º, aos envolvidos em processos judiciais ou administrativos, o contraditório e a ampla defesa.

De fato, a partir do advento da Lei 9.784, de 1999, vários juristas brasileiros passaram a produzir estudos sobre a processualidade administrativa. Houve divergências, pois alguns defendiam a existência de meros procedimentos administrativos, e não de processos administrativos.

Processo e procedimento poderiam se confundir na raiz etimológica, pois ambos têm origem no mesmo radical latino (procedo, processus). Entretanto, quando se trata de aplicação às ciências em geral e em especial às ciências jurídicas, não há como sustentar tal tese, haja vista serem entendidos como institutos que merecem tratamento diferenciado.

Principalmente no sistema jurídico pátrio, tomar processo e procedimento por sinônimos se torna insustentável, pois enquanto o artigo

Page 112

22, inciso I, atribui competência privativa à União para legislar sobre processo, o art. 24, inciso XI, atribui competência concorrente à União, Estados e Distrito Federal, para legislar sobre procedimento em matéria processual.

Nesse sentido, importante a contribuição de Ricardo Marcondes:

Por uma regra elementar e pacificamente aceita de hermenêutica, na lei, e muito mais na Constituição, não se presumem palavras inúteis. Se o processo fosse tão-somente procedimento, o dispositivo seria inútil, pois não haveria diferença entre matéria de procedimento e matéria processual. Do dispositivo, a contrario sensu, não se extrai outra conclusão possível a não ser a de que: no Brasil processo e procedimento são institutos distintos.86Não se trata de mero erro de técnica, mas sim de manifestação clara e inequívoca de que no sistema jurídico brasileiro processo e procedimento não podem ser tratados como a mesma coisa, pois estão, como dito mais acima, numa relação de continente e conteúdo.

Hoje se torna incontestável a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT