Democracia e Participação

AutorANDERSON JÚNIO LEAL MORAES
Páginas14-48
Democracia e Participação
1. Evolução dos modelos democráticos
Desde que colocada em prática pelos antigos gregos, a
democracia alentou sucessivas reformulações de seus
modelos. Em Atenas, instalou-se o modelo mais simples: os
cidadãos, que eram em pouca quantidade, uma vez que se
restringiam a homens maiores de idade, não escravos e não
forasteiros, tomavam decisões reunidos numa praça pública
as tão famosas ágoras. Estima-se que dos duzentos e
cinquenta mil habitantes de Atenas, trinta mil eram cidadãos
e apenas cerca de cinco mil participavam regularmente das
assembleias, que eram cerca de quarenta por ano
(CARTLEDGE, 2009)
A simplicidade do modelo ateniense obviamente não
resiste a arranjos sociais mais complexos. Observada a
mesma proporção, uma assembleia dessa espécie em Belo
Horizonte, que é apenas o sexto município mais populoso do
Brasil, teria cerca de cinquenta mil presentes, número de
pessoas que ocupam o maior estádio da cidade em poucas
ocasiões (decerto menos de quarenta por ano lembrando o
número de reuniões atenienses), normalmente em grandes
jogos de futebol. Se considerado o município de São Paulo,
seriam aproximadamente duzentas e vinte mil pessoas.
O suposto prodígio ateniense é também desmistificado à
luz da exposição de Renato Janine Ribeiro (2010): “Mas o que
esses cidadãos mais decidem? A sociedade grega não conhece
a complexidade da economia moderna. Os cidadãos tratam da
guerra e da paz, de assuntos políticos, mas parte razoável das
discussões parece girar em torno da religião e das festas,
também religiosas. Imaginemos o que é uma pólis grega. Uma
assembléia a cada nove dias, sim, mas não para tratar de
assuntos como os de grêmio estudantil (que é o órgão
moderno mais próximo de sua militância) E sim, com alguma
freqüência, para discutir festas e dividir as tarefas nelas. Não
é fora de propósito imaginar que o Rio de Janeiro, Salvador, o
Recife e Olinda dariam excelentes cidades-Estado, se
decidissem adotar a democracia direta. Fariam constantes
festas ao deus Dionísio (o Baco dos romanos), e à volta disso
organizariam a vida social. E é bom pensar numa comparação
nada acadêmica como esta, porque a tendência dominante,
falando da democracia grega, é acentuar sua seriedade
como se fosse um regime feito para tratar das mesmas
questões que nos ocupam. Não é o caso. A política era
provavelmente mais divertida, até porque era bem próxima da
vida cotidiana.”
Pois, então, é difícil acreditar na viabilidade de se reunir
quase semanalmente cinquenta mil cidadãos no Mineirão
para decidir sobre assuntos da cidade. Se, ainda assim,
fossem realizadas as reuniões, mais difícil seria acreditar na
viabilidade de discutir e decidir nelas assuntos de alta
complexidade, como os arranjos e rearranjos do trânsito de
veículos e transporte de massa. Mesmo as decisões sobre
festas seriam complicadas. As discussões sobre festas e
eventos religiosos, tendo em vista a pluralidade de credos,
mais ainda.
A substituição dos modelos de democracia atuais pela
democracia direta à moda grega é algo irrealizável. Se esse
modelo grego não foi mais empregado desde a Antiguidade,
por que, então, ele emerge nas discussões atuais sobre
democracia? Talvez porque esteja sendo revisitado neste
presente momento de crise da democracia.
Com efeito, após as revoluções burguesas, a democracia
foi redescoberta no Ocidente como alternativa ao absolutismo
e por isso alardeada como o único regime legítimo, uma vez
que instituiu o “governo do povo, pelo povo, para o povo”, na
célebre frase de Lincoln. Jacques Chevallier acrescenta que,
entre as várias visões concebidas sobre democracia, terminou
vencedora exatamente aquela que teve origem nas revoluções
burguesas: “Embora a concepção liberal da democracia tenha
tido de enfrentar versões concorrentes, mesmo
irredutivelmente opostas, ao longo de todo o século XX, ela
tornou-se hegemônica: os modelos alternativos
desmoronaram no decorrer da última década; o modelo liberal
difundiu-se no mundo inteiro, aparecendo doravante como o
único concebível. Tudo se passa como se a globalização não
fosse apenas econômica, mas também política e ideológica.”
(CHEVALIER, 2009, p. 184)
Diante da vitória da concepção de democracia liberal, a
pergunta feita por Chevallier (2009) é evidente: se é vitoriosa,
por que está em crise? A resposta, segundo o citado autor, é
que a crise é paradoxalmente um dos próprios mecanismos de
funcionamento do regime democrático, na medida em que
promove uma indeterminação do poder outrora centrado no
rei e, através desse e em última instância, em Deus.[2] Essa
indeterminação coloca o regime permanentemente em
discussão, sujeitando-o à crítica e à dúvida.
No presente, se está a discutir e expor à crítica a
compatibilidade entre dois pilares da democracia liberal,
sendo essa a razão de sua crise. Chevallier (2009) indica que
os pilares são o princípio democrático e a lógica
representativa.
Pelo princípio democrático, é dito que não poder
legítimo senão aquele que emana do povo. Por outro lado, no
modelo representativo: “O povo não tem a responsabilidade
direta da gestão dos negócios públicos: são os representantes
por ele eleitos que são encarregados de agir e de decidir em
seu nome. À diferença da democracia antiga, excludente de
qualquer ideia de representação, a democracia liberal foi
concebida como uma democracia “governada”, na qual o
poder efetivo é exercido por representantes.” (CHEVALLIER,
2009, p. 185)
A democracia por meio de representantes é uma
necessidade inafastável, mas em contraste com a ideia de

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