Jurisdição constitucional, democracia e liberdade de expressão - Análise do caso Ellwanger

Autor1. Cláudia Honório - 2. Heloísa Krol
Cargo1. Bacharel em Direito - Especializanda em Direito Constitucional - Mestranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - Bolsista da Capes - 2. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito do Estado - Universidade Federal do Paraná - Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná
1. A jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito

Entre as instituições consagradas pelo Estado de Direito – que tem como corolários a idéia de limitação e contenção do poder estatal pela consagração dos direitos fundamentais e da separação das funções estatais – a de relação mais problemática com a democracia é a jurisdição constitucional.

A incômoda relação se dá por vários motivos. Primeiro, porque dos “poderes” estatais, o Judiciário é o que tem a mais problemática relação com a base democrática, tendo em vista que de regra não há uma participação direta do povo nas suas deliberações e também os seus membros não são escolhidos pelo voto popular. Ainda, os juízes não estão sujeitos à renovação periódica dos seus “mandatos” e não são diretamente responsáveis perante a opinião pública3. Não se está afirmando que a melhor forma de resolver a questão seja promover eleições para juízes, por exemplo, pois isso poderia comprometer a necessária imparcialidade exigida da função. Mas não se pode ignorar que essas características acarretam um déficit de legitimidade democrática da jurisdição constitucional.

Contudo, existem fortes argumentos que legitimam a atuação da jurisdição constitucional. O argumento clássico foi desenvolvido pelo federalista Hamilton4 e retomado na seqüência por Marshall no julgamento do caso Marbury vs Madison5 no sentido de que o Judiciário simplesmente assegura o que está previsto na Constituição e, portanto, é a “vontade constitucional” que se impõe na decisão das questões constitucionais, não a “vontade dos juízes”.

Outra linha de argumentação muito próxima desenvolve-se a partir do trabalho de John Rawls, que entende a jurisdição constitucional como instituição legítima para proteger os elementos constitucionais essenciais6. Para Rawls, quando não estão em questão os elementos constitucionais essenciais, as maiorias podem decidir de acordo com determinada doutrina abrangente. Porém a jurisdição constitucional não tem essa abertura, pois o Judiciário não pode invocar a sua moralidade particular para decidir, devendo se limitar aos valores políticos de justiça e à razão pública e, por isso, o Judiciário é definido por Rawls como um caso exemplar de razão pública7.

Mas note-se que o próprio Rawls não justifica porque o Judiciário seria a instituição legítima para fazer valer os elementos constitucionais essenciais em todos os planos, embora afirme que o Judiciário é o melhor intérprete da Constituição8.

De fato, a questão da atuação da jurisdição constitucional não é simples. Antes de se tomar qualquer posição, deve-se enfrentar necessariamente a objeção contramajoritária, tratada de forma bastante minuciosa por Roberto Gargarella, pois não é tão claro porque o Judiciário deve atuar como guardião da Constituição.

Gargarella analisa as denominas “soluções conservadoras” que procuram justificar a atuação da jurisdição constitucional9. O primeiro argumento para justificar que os juízes decidam em nome do povo assenta-se na noção de que a imparcialidade pode ser prejudicada pelo apelo constante à cidadania, na medida em que se poderia decidir com base em opiniões precipitadas, prejudiciais ou pouco refletidas10.

Assim, a legitimidade da jurisdição constitucional estaria baseada em um argumento profundamente elitista: os juízes, por estarem afastados do calor do debate público e por serem indivíduos extremamente capacitados em relação aos membros do Executivo e do Legislativo, poderiam decidir em última instância sobre as questões constitucionais mais fundamentais e também sobrepor a sua opinião sobre a opinião do Legislativo11.

Gargarella observa que os defensores do controle jurisdicional da constitucionalidade buscam contornar esse argumento afirmando, por exemplo, que quando o Judiciário nega validade a uma lei não está impondo a sua opinião sobre a vontade do povo, mas apenas sobrepondo o que está determinado na Constituição. Trata-se, aliás, de uma das mais sólidas e difundidas defesas do controle de constitucionalidade presentes já na tese de Hamilton12.

Todavia, insiste Gargarella que também não é tão evidente assim que o Judiciário esteja apenas afirmando o estabelecido constitucionalmente pelo povo, por vários motivos. Primeiramente, há que se aferir o grau de adesão do povo à própria Constituição, tendo em vista exemplos históricos de Constituições até hoje vigentes que foram promulgadas sem que boa parte da população fosse considerada como integrante do povo13. Em segundo lugar, também é difícil sustentar porque a manifestação de vontade da geração anterior deveria se sobrepor às manifestações de vontade das gerações presentes e às futuras manifestações das gerações sobre as questões políticas. Ou, o que justificaria a imposição de ataduras pelas gerações passadas?14

Também, não se pode aceitar que o papel da jurisdição constitucional restrinja-se à mera leitura do que está expresso na Constituição. A redação dos dispositivos constitucionais em geral admite uma interpretação bastante ampla e não automática e por que motivo à delimitação do âmbito normativo da Constituição deveria ficar a cargo do Judiciário?15

Ainda, a partir da sua concepção democrático-deliberativa, Carlos Santiago Nino afirma que o controle da constitucionalidade é sim imprescindível, contudo, não deve ser necessariamente jurisdicional16. Portanto, o controle jurisdicional da constitucionalidade seria contingente mesmo em um ambiente marcado pela idéia de supremacia constitucional. O controle jurisdicional seria justificável apenas em algumas questões relativas à preservação os direitos fundamentais, frente às deliberações democráticas17.

E dentro desse núcleo mínimo que deve necessariamente ser defendido de forma ativa pelo Judiciário estão inseridos aqueles direitos fundamentais que são tidos como condições para a democracia. Para além da proteção desses direitos, devem ser observadas as condições democráticas, pontuando-se em cada caso se é legitima uma postura ativa ou de deferência do Judiciário.

Os direitos tidos como essenciais à democracia são identificados por Nino como os direitos relativos à participação livre e igual no processo de discussão e tomada de decisões, à orientação da comunicação no sentido da justificação, à proteção das minorias isoladas e à proteção de um marco emocional apropriado para a argumentação18. Portanto, na guarda desses direitos fundamentais o Judiciário deve apresentar uma postura mais ativa mesmo no controle abstrato da constitucionalidade, pois a sua atuação reveste-se de evidente legitimidade.

A liberdade de expressão, consagrada no artigo 5º, incisos IV, VIII e IX da Constituição Federal, configura-se como condição indispensável para a democracia, pois assegura a participação livre e igual no processo de discussão e tomada de decisões, e também se presta à proteção das minorias que não serão submetidas à decisão majoritária sem livremente expressar seu ponto de vista e o dissenso.

Portanto, mesmo com base no prisma democrático-deliberativo – que implica em um âmbito mais restrito de atuação da jurisdição constitucional – para garantir a liberdade de expressão é legítima uma postura ativa do Judiciário. Daí se torna interessante a análise do paradigmático caso Ellwanger, julgado em 2003 pelo Supremo Tribunal Federal, momento em que a Corte não tratou de proteger, mas sim de restringir o direito fundamental à liberdade de expressão por razões morais e jurídicas.

2. O Caso Ellwanger

Em 14/11/91, Sigfried Ellwanger, autor, editor e distribuidor de livros, foi denunciado pelo crime de racismo contra o povo judeu. Apesar de absolvido em primeira instância, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a dois anos de reclusão (com sursis pelo prazo de quatro anos), por fazer apologia, por meio de livros, de idéias discriminatórias contra a comunidade judaica, sendo incurso no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, na redação dada pela Lei nº 8.081/90: “Art. 20 – Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão de dois a cinco anos.”

Considerou-se que nas obras de sua autoria (“Holocausto. Judeu ou alemão? – Nos bastidores da mentira do século”) e de sua distribuição (“O judeu internacional”, “A história secreta do Brasil”, “Brasil – Colônia de banqueiros”, “Os protocolos dos sábios de Sião”, “Hitler – Culpado ou inocente?”, “Os conquistadores do mundo – os verdadeiros criminosos de guerra”) há mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias, incitando desprezo e ódio contra os judeus, ao negar o holocausto e afirmar que o povo judeu causa males ao mundo.

Inconformado com a decisão do Tribunal, o réu impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, não obtendo sucesso, devido à imprescritibilidade do crime cometido. Novamente impetrou habeas corpus (nº 82.424/RS), dessa vez ante o Supremo Tribunal Federal, alegando não ter cometido crime de racismo, mas simples discriminação, uma vez que os judeus são um povo, não uma raça, como eles mesmos definem. Por não se caracterizarem como raça, não houve racismo, e já estaria prescrito o delito.

Coube, então, aos Ministros do Supremo Tribunal Federal a análise das seguintes questões: o crime de racismo e, por conseguinte, a imprescritibilidade, dirige-se apenas à discriminação em relação aos negros? A discriminação contra judeus pode ser entendida como racismo? O crime praticado pelo autor é imprescritível?

Os Ministros foram em busca de um conceito jurídico para a expressão “racismo” contida na Constituição Federal. Isso porque, como notou a Ministra Ellen Gracie...

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