Democracia, justiça e processo

AutorSabrina Nasser de Carvalho
Páginas17-53
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DEMOCRACIA, JUSTIÇA E PROCESSO
1.1 DEMOCRACIA E DIREITOS SOCIAIS
A relação e o diálogo estabelecidos entre o Direito e as formas de
exercício do poder instigam reflexões e controvérsias de pensadores
desde a antiguidade, quando então iniciaram a busca pelas respostas dos
questionamentos advindos da relação de circularidade estabelecida entre
estes dois elementos.1
O embasamento da relação de interdependência entre Direito e
o modo de governar subjaz na premissa explicitada por Norberto Bob-
bio de que direito e poder são duas faces de uma mesma moeda: só o
1 “(...) já que as leis são geralmente postas por quem detém o poder, de onde vêm as
leis a que deveria obedecer o próprio governante? As respostas dada pelos antigos a
esta pergunta abriram duas estradas. A primeira: além das leis postas pelos governantes
existem outras leis que não dependem da vontade dos governantes, e estas são ou as
leis naturais, derivadas da própria natureza do homem vivendo em sociedade, ou as
leis cuja força vinculatória deriva do fato de estarem radicadas numa tradição (...). A
segunda: no início de um bom ordenamento de leis existe o homem sábio, o grande
legislador, que deu a seu povo uma constituição à qual os futuros dirigentes deverão
escrupulosamente ater-se”. (BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma
teoria geral da política. Traduzido por Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, pp. 96/97).
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SABRINA NASSER DE CARVALHO
poder pode criar o direito e só o direito pode limitar o poder.2 Pelos
ensinamentos do filósofo italiano, o Estado democrático posiciona-se
segundo o ponto de vista do direito, ao contrário do Estado despótico,
que se refere a um tipo ideal de Estado, compreendido do ponto de
vista do poder.3
Em uma democracia, portanto, para que as decisões tomadas por
determinados indivíduos possam ser aceitas como decisões coletivas
faz-se imprescindível a observância das “regras do jogo”, ou seja, leis
preestabelecidas, que garantam a qualidade democrática das deliberações
políticas. Do mesmo modo, é por intermédio do modelo democrático
que as “regras do jogo” são elaboradas e aprimoradas; pois o Direito,
afastando-se da concepção jusnaturalista, não é um conjunto de dados
extraídos da natureza do homem, e sim reflete dados históricos, sociais
e culturalmente construídos.4
Nesta linha de intelecção, é possível descortinar uma relação de
interdependência ou reciprocidade estreita entre direitos fundamentais
e democracia no Estado Democrático de Direito.5 Neste modelo de
2 “O governo das leis celebra hoje seu trunfo na democracia. E o que é a democracia
se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos
sem derramamento de sangue? E em que consiste o bom governo democrático se não,
acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? Pessoalmente, eu não tenho dúvidas
sobre a resposta a estas questões. E, exatamente porque não tenho dúvidas, posso concluir
tranquilamente que a democracia é o governo das leis por excelência”. (BOBBIO,
Norberto. O futuro da democracia. Traduzido por Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Paz e Terra, 2000, p. 185).
3 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Traduzido por Marco Aurélio Nogueira.
São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 23.
4 “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos,
ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas”. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Traduzido por
Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25).
5 “Pode-se dizer, assim, que há entre os direitos fundamentais e a democracia uma
relação de interdependência e reciprocidade. Da conjugação desses dois elementos é
que surge o Estado democrático de direito, estruturado como conjunto de instituições
jurídico-políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e promover
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PROCESSOS COLETIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Estado, os postulados estão preconizados sob a prevalência dos direitos
fundamentais e nos preceitos participativos da sociedade civil. Com isso,
tem-se que os governantes estão vinculados ao respeito estrito dos di-
reitos que perfazem a dignidade humana e, ainda, que as decisões polí-
ticas devem ser o resultado da intensa participação da sociedade civil nas
deliberações de larga importância política e social.
No Estado de Direito, perfilhava-se o postulado de que o Direi-
to era apenas um limitador de poder, mas a criação das regras não era
concebida como resultado de um procedimento democrático verdadei-
ramente popular.
Após um largo período de conquistas, o paradigma no Estado
Democrático de Direito se alterou. Neste momento, os valores demo-
cráticos ultrapassam o conceito meramente formal de democracia, de-
notando-se um projeto de autogoverno do povo, em que os cidadãos
atuam, não apenas como destinatários das normas, mas também partici-
pam do processo de elaboração dos comandos normativos. Neste sen-
tido, a limitação do poder em favor das liberdades individuais não se
torna a única preocupação, mas a ênfase também é de garantir a parti-
cipação efetiva dos cidadãos nos processos de tomada da decisão políti-
ca, outorgando condições materiais para o exercício dos direitos políti-
cos. A participação do povo é o elemento legitimador das escolhas que
regem a sociedade, tornando-as eminentemente coletivas e fruto de
opções advindas dos anseios sociais, com a dinamicidade inerente às
transformações da sociedade, refletindo fielmente a evolução de um
determinado momento da história.6
a dignidade da pessoa humana”. (BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito
administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, pp. 50/51).
6 “Fluindo do dissenso conteudístico que caracteriza estruturalmente o mundo da vida
e, pois, a esfera pública, a soberania do povo é fator de reciclagem permanente do
Estado em face das novas situações e possibilidades, assim como condição básica e
indispensável de sua heterolegitimação em uma sociedade sistemicamente hipercomplexa,
eticamente heterogênea e politicamente pluralista”. (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e
Leviatã: uma relação difícil. O estado democrático de direito a partir e além de Luhmann
e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 165).

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