Estado Democrático de Direito e Direito Fundamental ao Trabalho Digno

AutorGabriela Neves Delgado
Páginas250-256

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Introdução

No Direito do Trabalho, qualquer conhecimento teórico que se pretenda universal deve estar instruído por reflexões filosóficas e sistemáticas sobre os fundamentos do trabalho. É por isso que se considera, conforme enuncia Felice Bataglia, que a valorização filosófica do trabalho é fundamento necessário para se alcançar a sua valorização jurídica1.

A Filosofia do Trabalho revela-se como conhecimento teórico e universal, além de peculiar ao processo civilizatório, vez que combina a construção do saber com a interpretação do próprio saber2.

As indagações filosóficas acerca do trabalho procuram estabelecer fundamentação racional, concatenada com argumentos ordenados e lógicos, sobre os pressupostos de sua existência.

Na perspectiva e afirmação do Estado Democrático de Direito, fundado e ancorado na Constituição da República, tais fundamentos se concentram na compreensão do sentido e da extensão do direito fundamental ao trabalho digno.

É claro que a análise e contextualização do direito fundamental ao trabalho requerem, como um de seus pressupostos, o desenvolvimento de interpretações críticas que considerem a história como elemento integrado às transformações e à configuração do mundo do trabalho contemporâneo.

Tais interpretações constituem subsídios à compreensão do trabalho de modo integrado ao processo mais amplo e complexo, constituído por variáveis sociais, políticas, econômicas, culturais e jurídicas, presentes no incessante movimento da humanidade através do tempo. Análise que, do ponto de vista jusfilosófico, enseja a recuperação da trajetória dos direitos fundamentais por meio dos paradigmas do Estado contemporâneo.

É claro que a análise do direito fundamental ao trabalho relaciona-se diretamente à sucessão histórica vivenciada em cada época. Dada sua característica de não linearidade, vale dizer, por sujeitar-se às limitações e progressões contínuas provenientes da ação dos próprios sujeitos da história, é possível afirmar que o processo de concretização do direito fundamental ao trabalho será sempre dinâmico e jamais pleno ou acabado. Portanto, seus significados e valores objetivados em normas jurídicas encontram-se permanentemente submetidos à história em movimento.

Na vigência do Estado Liberal de Direito, fase em que o capitalismo industrial tornou-se o eixo preponderante de produção no Ocidente, predominava forte exploração do trabalho, tanto nos países matrizes do capitalismo, como naqueles a eles agregados e, portanto, dependentes.

Nos países periféricos destacava-se, ainda, um dos mecanismos da clássica acumulação primitiva de capital, ou seja, a transferência de recursos para os países centrais sob a forma de metais e pedras preciosas (período do mercantilismo, que antecedeu à Revolução Industrial).

As relações produtivas eram marcadas por precária proteção legal. Essa situação, especialmente nos países onde a industrialização despontava e se consolidava, estimulou a associação da classe trabalhadora como verdadeiro contraponto aos abusos cotidianos da exploração do trabalho.

A crise gradativa do liberalismo propiciada em parte pela consciência e atuação da classe obreira, sedimentadas a partir

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de meados do século XIX, contribuiu para a reformulação do modelo de Estado que, de abstencionista e com atribuições mínimas, passou gradativamente a interferir na economia e nas questões sociais, ampliando seu campo de atuação e até mesmo de intervenção.

Edificou-se o Estado Social de Direito, já no plano do século XX.

Ao longo da consolidação do Estado Social de Direito constituiu-se processo histórico de regulamentação de uma específica relação de trabalho, identificada por meio do conceito técnico-jurídico da relação de emprego.

O Estado Social de Direito representava alternativa não só às demandas dos trabalhadores, mas também às crises do capitalismo desenvolvidas no decorrer de sua trajetória histórica, entre as quais duas se destacaram por seus grandes impactos e efeitos reprodutivos.

Em primeiro lugar, cabe referência à crise de 1929 que, como um rastilho de pólvora, contaminou mercados financeiros e produtivos, gerou graves processos inflacionários, contraiu a economia, ampliou o desemprego e colocou mais uma vez em xeque os preceitos do liberalismo.

Como desdobramento de tal crise surgiram, em diferentes países do mundo, práticas governamentais intervencionistas, centralizadoras e estatizantes, que variaram em matizes e características, incluindo desde as experiências de coloração fascista implementadas em países como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, até o modelo do New Deal, posto em prática por Franklin Delano Roosevelt, nos EUA.

No Brasil, esse período caracterizou-se pelo governo de Getúlio Vargas, iniciado em 1930 e que teve seu ápice intervencionista e centralizador na fase do Estado Novo, entre os anos de 1937 a 1945.

Outra grande crise do capitalismo no século XX culminou, tempos depois, em meados da década de 1970, em um mundo quase que inteiramente interligado pelas teias do capital e do mercado. Mas, dessa feita, a solução adotada para neutralizar os impactos do referido processo foi oposta àquela acolhida na década de 1930. Ou seja, a solução intervencionista foi descartada em benefício de práticas liberais.

O fetiche do Estado mínimo retomou sua ascensão. Os postulados da livre negociação e do abstencionismo renovaram-se como diretrizes do Capital e do Estado.

Reestruturou-se, sob nova roupagem, o liberalismo que, moldado pela dialética histórica, tornou-se fundamento dos países do eixo central capitalista e também dos demais países periféricos vinculados à mesma lógica econômica preponderante no final do século passado.

Nasceu, com força avassaladora e fortemente expansionista, o neoliberalismo, diretriz do Estado Poiético3, assim identificado por Joaquim Carlos Salgado:

No Estado poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum compromisso tem com o ético, e procura, com a aparência da cientificidade, subjugar o político, o jurídico e o social. Não é ético, porque o seu fazer não se dirige a realizar os direitos sociais. Evidentemente, se o Estado realiza os direitos sociais, esse fazer é ético.4

O Estado Poiético, ao propor novas ideologias e práticas para o mundo capitalista contemporâneo (com destaque para a flexibilização extremada das normas jurídicas e a desregulamentação, às vezes radical, do mercado laborativo), desestabilizou o trabalho enquanto instrumento de emancipação e de consolidação da identidade social e coletiva do obreiro.

Assim, ao final do século XX e início do XXI, o trabalho tende a ser incorporado ao mercado como valor estritamente utilitário. Nessa linha, também a valorização do trabalhador em sua condição humana tende a ser desprestigiada, já que o obreiro recorrentemente é visto como mero instrumento de trabalho de uma relação contratualizada.

Os processos de emancipação e de afirmação da identidade social e coletiva do homem pelo trabalho também são desestabilizados em favor da instrumentalidade do ofício.

É exatamente pelo fato de não reconhecer o caráter social do trabalho e a condição de pessoa do trabalhador, além da necessidade de proteção social pelo Direito, que o Estado Poiético desestabiliza o direito ao trabalho digno, qualquer que seja sua forma de manifestação.

É preciso, pois, retomar e resgatar os contornos constitucionais que enaltecem o trabalho enquanto suporte de valor da dignidade do ser humano.

1. Breve digressão sobre os fundamentos filosóficos do trabalho

Em certo sentido, o trabalho é suporte de valor5, por isso é identificado de diversas maneiras, dependendo do ponto de vista de quem analisa e de quem é agraciado por ele. Assim, poderá ser valorizado como digno/indigno; lícito/ilícito; formal/informal; estável/instável; seguro/perigoso, e assim sucessivamente.

O sentido do valor trabalho revelar-se-á tanto pelo sujeito trabalhador, como pelo momento histórico vivenciado. Em outras palavras, o trabalho determina a própria valorização do sujeito que trabalha (entenda-se: a valorização refere-se

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ao sujeito enquanto trabalhador). Então é possível que, em sociedade, se valorize de maneiras distintas o trabalhador empregado, o trabalhador autônomo, o trabalhador estagiário, entre outros. O que não quer dizer, diga-se de passagem, que o Direito deva identificar as particularidades de cada trabalho por critérios de exclusão.

O eixo teórico, ora proposto, recai sobre o trabalho em seu processo de realização como valor humano. Trabalho que, sendo uma das categorias de maior relevância social, transforma simultaneamente o sujeito e a sociedade.

Todavia, considerada a dinâmica do capitalismo deflagrada sobretudo ao final do século XX e início do XXI, depara-se com a fragilização do valor trabalho e de seu significado mais fundamental de construção da dignidade, seja considerada a identidade individual, seja considerada a identidade coletiva obreira.

Tal fragilização aproxima-se por analogia, em alguns casos, à realidade dos primórdios da Revolução Industrial quando não havia qualquer regulamentação protetora do trabalho humano.

No tratamento do tema merece destaque a historicidade do conceito de trabalho, considerados os diversos eixos propostos à temática no mundo ocidental.

Felice Bataglia ressalta a complexidade e importância do trabalho, elemento imprescindível à vida humana e que pode ser aferido sob os pontos de vista econômico, técnico, jurídico, religioso e filosófico.

Nesse sentido, disserta:

Trabalho é um conceito complexo, pois implica os mais diversos aspectos da vida e, por isso, está voltado para as mais diversas ciências; cada uma delas se ocupa dele e o enquadra diversamente em seu...

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