Delito de bagatela: princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato

AutorProf. Luiz Flávio Gomes
CargoDoutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri
Páginas1-23

Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Professor Honorário da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santa Maria (Arequipa/Peru) e Diretor do site www.direitocriminal.com.br

Page 1

1. Introdução

O princípio da insignificância não conta com reconhecimento normativo explícito no nosso Direito (salvo algumas exceções no CPM: art. 209, § 6º , por exemplo - em caso de lesão levíssima, autoriza que o juiz considere o fato como mera infração disciplinar -; art. 240, § 1º , para o furto insignificante etc.). Mas na jurisprudência, como se sabe, apesar de alguma aporia, ele é amplamente admitido.1 A novidade que está (cada vez mais patente) nessa matéria consiste numa sutil distinção entre o princípio da insignificância e o da irrelevância penal do fato,2 que a própria jurisprudência está se encarregando de fazer.3

A diferença fundamental entre os dois princípios mencionados é a seguinte: uma linha jurisprudencial (a mais tradicional) reconhece o princípio da insignificância levando em conta (unicamente) o desvalor do resultado, é dizer,Page 2 é suficiente (para a atipicidade) que o nível da lesão (ao bem jurídico) ou do perigo concreto verificado seja ínfimo. Cuidando, ao contrário, de ataque intolerável, o fato é típico (e punível).

Uma outra linha jurisprudencial (cada vez mais evidente), para o reconhecimento da infração bagatelar, não se contenta só com o desvalor do resultado e acentua a imprescindibilidade de outras exigências: o fato é penalmente irrelevante quando insignificantes (cumulativamente) são não só o desvalor do resultado, senão também o desvalor da ação bem como o desvalor da culpabilidade do agente (isto é: quando todas as circunstâncias judiciais - culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, conseqüências, circunstâncias etc. - são favoráveis).

Ambos os princípios (da insignificância tout court e da irrelevância penal do fato), creio, podem ser englobados numa clássica (sugestiva e expressiva) denominação: infração bagatelar (mesmo porque, quanto se fala em infração bagatelar ou delito de bagatela imediatamente conseguimos apreender o espectro do seu conteúdo: é algo insignificante, de ninharia ou, em outras palavras, não se trata de um ataque intolerável ao bem jurídico, que necessite da intervenção penal).

De qualquer maneira, não ocupam, os dois princípios, a mesma posição topográfica dentro do fato punível. O princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade do fato; o princípio da irrelevância penal do fato é causa de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto).

Na jurisprudência da nossa Corte Suprema (e limitando-se, neste momento, somente a ela) podemos notar a clara distinção (que vem sendo feita) entre as duas sub-espécies de infração bagatelar: em 06.12.88, num caso de lesão corporal culposa (acidente de trânsito), pela primeira vez, com o nome de principio da insignificância, o STF (RHC 66.869-PR, relator Min. ALDIR PASSARINHO) o reconheceu e levou em conta exclusivamente o desvalor do resultado.4

Num outro julgado (HC 70.747-RS, relator Min. FRANCISCO REZEK, RTJ 159/199 e ss.) o Colendo STF deixou de acatar o princípio da insignificância, embora o desvalor do resultado fosse mínimo, porque o acusado não reunia condições para isso. O resultado jurídico foi insignificante mas o fato (globalmente considerado) não foi admitido como penalmente irrelevante, porque o réu era reincidente (já condenado antes por desacato ePage 3 desobediência a policiais).5 O entendimento do STF mereceu críticas de LUIZ LUISI.6

No primeiro caso foi suficiente o desvalor do resultado (resultado bagatelar); no segundo salientou-se que a lesão era bagatelar mas o autor do fato não era bagatelar. Segundo a perspectiva dessa segunda decisão, só pode ser reconhecido o delito bagatelar quando o resultado, a ação e a culpabilidade (o autor) são bagatelares. Como se vê, há uma grande diferença entre uma coisa e outra, entre um fundamento e outro (do delito bagatelar).

Pergunta-se: para o reconhecimento do delito bagatelar, em suma, devemos levar em conta exclusivamente o desvalor do resultado (princípio da insignificância, com reflexos na tipicidade -no injusto penal-) ou conjunta e cumulativamente todos os desvalores citados (do resultado, da conduta e da culpabilidade)? Quando o promotor vai pedir o arquivamento de um inquérito ou quando o juiz vai rejeitar uma denúncia, fundamenta o delito bagatelar no princípio da insignificância (só desvalor do resultado) ou no princípio da irrelevância penal do fato (todos os desvalores conjuntamente examinados) ?

Enquanto o legislador não se definir sobre a questão com clareza (adotando expressamente o princípio da insignificância tout court ou princípio da irrelevância penal do fato, ou, ainda, ambos), é bem provável que a jurisprudência continuará oscilando (ora num, ora noutro sentido). E é natural, penso, que assim seja, porque, no fundo, no atual Direito penal, há espaço para os dois princípios. Um ou outro, em cada caso concreto, pode servir de fundamento para o reconhecimento do delito de bagatela (leia-se: da atipicidade ou da desnecessidade da pena).

Vejamos: o sujeito que tenha subtraído um palito de fósforo da vítima, ainda que conte com maus antecedentes, seja reincidente e tenha personalidade voltada para a delinqüência, não pode ser punido pelo delito de furto porque o fato é claramente atípico. Está fora do âmbito de incidência do art. 155 do CP. A norma proibitiva desta figura típica não foi pensada para uma subtração tão insignificante. O inquérito, o processo e a sanção penal, nesse caso, apresentam-se como aberrantes (chocantes). Não se pode usar o Direito penal por causa de uma lesão tão ínfima (leia-se: por causa de um palito de fósforo); de outro lado, quem causa uma lesão corporal leve na vítima, depois de já ter sido responsável e condenado por outros acidentes de trânsito, pode não fazer jus ao reconhecimento da bagatela, isto é, a pena pode ser, no caso, necessária. De outro lado, pode também ocorrer o inverso: às vezes o desvalor do resultado não permite a aplicação da insignificância, mas acham-Page 4 se presentes todos os requisitos da irrelevância penal do fato (agora a pena torna-se desnecessária).

O que acaba de ser explicitado tem total coerência com o fundamento jurídico da dispensa da pena (do afastamento da intervenção penal em razão da irrelevância penal do fato), que está contemplado no art. 59 do CP.7 O juiz, levando em consideração as circunstâncias judiciais aí previstas, fixará a pena conforme seja suficiente e necessário para a prevenção e reprovação do delito. Em outras palavras, quando irrelevante é o fato, em virtude da presença de todos os requisitos bagatelares (resultado, conduta e culpabilidade bagatelares) a pena torna-se desnecessária. Sua dispensa, nesse caso, não chega a afetar o seu aspecto preventivo geral.

De qualquer maneira, saliente-se que um ou outro princípio permite de plano o arquivamento das investigações: o primeiro (da insignificância) porque o fato é atípico; o segundo (da irrelevância penal do fato) porque o fato não é punível (o art. 43, I, do CPP, quando diz que a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime deve, hoje, ser interpretado do seguinte modo: quando o fato narrado evidentemente não constituir fato punível). A palavra crime, no citado dispositivo, não foi empregada em sentido restritivo (fato típico e antijurídico ou fato típico, antijurídico e culpável), senão no sentido de fato punível. Uma prova disso: filho que furta pai não é punível; se esse é o fato narrado, o juiz tem que rejeitar a denúncia; no caso de imunidade parlamentar material, a denúncia tem que ser rejeitada. Se é assim, quando se nota claramente a dispensa da pena (em razão do princípio da irrelevância penal do fato), também deve ser rejeitada a denúncia (ou queixa).

Resumindo: todas as vezes que nos depararmos com uma infração bagatelar, o certo é pedir o arquivamento das investigações (fundamentando o pedido ou no princípio da insignificância ou no princípio da irrelevância penal do fato). E se houver denúncia ? Cabe ao juiz rejeitá-la (CPP, art. 43, I). E se o juiz não rejeitou ? Cabe HC para o trancamento da ação penal (que no caso de infração bagatelar é juridicamente impossível).

2. Posição do juiz diante do delito de bagatela (exame de um caso concreto)

Feitas as distinções devidas entre o princípio da insignificância e o da irrelevância penal do fato, remarque-se que, ressalvadas as exceções (militares) mencionadas, o princípio de insignificância (diferentemente do que ocorre com o princípio da irrelevância penal do fato) não está expressamente contemplado "nas leis brasileiras". Mas nem por isso é ignorado pelaPage 5 jurisprudência (isto é, pelo Direito). Nisso reside mais uma prova de que a "lei" não é todo o Direito, é só uma parte dele. O juiz, portanto, pode até indeferir a pretensão de se reconhecer um ou outro princípio no caso concreto. O que não pode jamais é ignorá-los ou imaginar que não existem.

Desatualizado, destarte, é o magistrado que desconhece os dois princípios mencionados e, pior, o que julga os conflitos (especialmente os criminais) exclusivamente sob a ótica da legalidade (secundum legem), não sob o parâmetro do Direito (secundum ius). Um juiz desse jaez (Bindiniano, Rocconiano, técnico-jurídico etc.) não serve...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT