Dehumanization of the black population: genocide as tacit principle of capitalism/Desumanizacao da populacao negra: genocidio como principio tacito do capitalismo.

AutorAlmeida, Magali da Silva
CargoLutas, Cidadania e Direitos Humanos

Introducao

Nao lavarei minha mao/ Com agua doce ou salgada./ Tenho as maos para outras coisas,/ Nao as desejo lavadas./Minhas maos podem estar sujas/ De terra, barro e azeite:/ Sao vestigios das acoes/ Num mundo de boca amarga./ Nao sou Pilatos./ Prefiro Errar, porem do meu erro/ Mostrar que penso na acao./ As maos sao fios nervosos,/ Condutos do coracao./ Sao antenas dirigidas/ Ao sol que brilha no ceu./ As maos sujas e calosas/ Mancham juntas, sao milnoes./ Milhoes de maos que desejam/ Se irmanam ao coracao./ Nao lavarei minhas maos em bacia de platina:/ Quero-as sujas, mas presentes/ Na hora que se aproxima. (CLOVIS MOURA, 1977).

Durante minha trajetoria de vida, tenho experimentado a "sensacao" de estar comecando sempre do zero. Refiro-me a luta historica, mais singular, de milhoes de trabalhadoras e trabalhadores negros e brasileiros pelo reconhecimento de suas necessidades humanas, se e que o capitalismo nos permite esta possibilidade. Estamos (implico-me nesse contexto) sempre sobressaltadas(os) diante da violencia estrutural perpetrada contra nos, desde o nascimento, com a qual convivemos durante toda vida. O racismo tem apartado do acesso aos direitos humanos, em todo planeta, multidoes de africanos e seus descendentes, dentro e fora da Africa.

No Brasil, resistimos cotidianamente a morte anunciada pela discriminacao racial. No entanto, na maioria das vezes rendemo-nos diante da forca da midia que, macicamente, naturaliza a violencia racial contra a populacao negra em seus programas sensacionalistas, ridicularizando e inferiorizando a imagem desse grupo etnico-racial no trabalho, na educacao, na religiosidade, no noticiario policial e ate no exercicio da sexualidade e orientacao sexual. A midia e apenas um dentre os muitos dispositivos de poder hegemonicos.

O pano de fundo que se movimenta e se transmuta historicamente sao as ideologias raciais que estruturam as relacoes sociais no Brasil, sobre as quais se reafirmam os preconceitos e as praticas discriminatorias que dao materialidade ao racismo "a brasileira". Este racismo, cuja existencia material e reconhecida pela populacao, dialeticamente nega a existencia dos agentes, pois, no Brasil, "ninguem e racista". Desconhecidos esses agentes, nutre-se a impunidade, a invisibilidade, o silencio e, consequentemente, maiores sao as dificuldades para seu enfrentamento atraves de politicas publicas.

Prevalecem, no Brasil, de maneira densa, as ideias de mesticagem e democracia racial, em contraposicao as ideias de identidade negra forjada pelos movimentos negros, cujos projetos em disputa tem permeado as arenas de luta no campo social e politico. Neste cenario, algumas conquistas dos movimentos negros sao garantidas atraves da implantacao de politicas de acoes afirmativas para a populacao negra na educacao (educacao basica, ensino fundamental, medio e superior), no mercado de trabalho, na politica de saude etc., em consonancia aos preceitos constitucionais e dentro dos limites juridicos normativos do Estado de Direito. Longe da garantia de atendimento as suas necessidades minimas, a populacao negra e o segmento populacional que ocupa, macicamente, a base da piramide social, e sua presenca no topo e quase inexistente.

Como afirma Ricardo Henriques (2001, p.9), a pobreza e a indigencia no Brasil nao agem democraticamente, pois nao atingem igualmente os distintos grupos raciais pertencentes ao contingente de 53 milhoes de pobres e 22 milhoes de indigentes.

Os negros em 1999 representam 45% da populacao brasileira, mas correspondem a 64% da populacao pobre e 69% da populacao indigente. Os brancos, por sua vez, sao 54% da populacao total, mas somente 36% dos pobres e31% dos indigentes. Ocorre que, dos 53 milhoes de brasileiros pobres, 19 milhoes sao brancos, 30,1 milhoes pardos e 3,6 milhoes, pretos. Entre os 22 milhoes de indigentes temos 6,8 milhoes brancos, 13,6 milhoes pardos e 1,5 milhao, pretos. Este artigo apresenta algumas reflexoes sobre a desumanizacao da populacao negra e sua experiencia na Diaspora Negra como expressao da violencia racial institucionalizada no Brasil, fazendo parte de um amplo processo de dominacao/opressao capitalista na consolidacao dos Estadosnacao e do colonialismo.

Privilegiei, primeiramente, a apresentacao de alguns indicadores sociais para demonstrar o racismo como fator relevante para as desigualdades sociais, bem como o modo como ele opera na producao das iniquidades, entre negros e brancos, no acesso ao conjunto dos direitos.

Em seguida, retomo alguns estudos criticos sobre a Diaspora Negra, cuja nocao e concebida, neste estudo, como marcada por multiplos e contraditorios processos genocidas antinegros (VARGAS, 2010). A experiencia comum de abusos perpetrados por processos antinegros na Diaspora Negra, sobretudo nos paises em desenvolvimento, nao e somente dominante, mas inerente ao sistema capitalista em sua fase contemporanea e ao Estado-nacao imperial (VARGAS, 2010).

A Diaspora Negra, enquanto um conceito historico e, por essencia, dinamico e ao mesmo tempo politico. Assim, enfoca o terror racial como uma de suas dimensoes e possui o genocidio antinegro como sua caracteristica fundamental. Nestes termos, que desafios sao colocados como saida para os negros da Diaspora Negra?

  1. Indicadores sociais ou expressoes do genocidio antinegro? A realidade que nao quer calar

    Os estudos estatisticos tem constatado que ha um fosso entre a populacao negra e a populacao branca, em termos de acesso e oportunidades. A ausencia de negros nas profissoes de prestigio, na politica, em algumas expressoes artisticas, na midia etc., e resultado de uma longa historia de exclusao, na qual o racismo e o sexismo atuam definindo para homens e mulheres negras lugares desprivilegiados na sociedade, quase intransponiveis. E preciso que falemos do nosso lugar, a partir de nossa perspectiva e crenca.

    Gonzalez (1984) afirma que devemos romper com a domesticacao, confirmando nossa fala justamente pelo motivo de sempre termos sido tratados como objetos e infantilizados (infans e aquele que nao tem fala propria; e a crianca que fala sobre si em terceira pessoa, porque e falada pelos adultos).

    Beatriz Nascimento, intelectual dotada de qualidades impares, teve a sua obra revisitada por Ratts (2007). Sua producao nutre a nossa memoria de informacoes historicas imprescindiveis para vermos o Brasil sob outro angulo. Obra essa que libertou a negritude do aprisionamento academico do passado escravista ao cunhar o conceito de quilombo urbano, "conceito com o qual ela ressignifica o territorio/favela como espaco de continuidade de uma experiencia historica que sobrepoe a escravidao a marginalizacao social, a segregacao e a resistencia dos negros no Brasil." (RATTS, 2007, p. 11).

    As reflexoes trazidas a baila por Lelia Gonzalez (1984) e Beatriz Nascimento apud Ratts (2007) retratam a violencia do racismo e do sexismo a que historicamente e submetida a populacao negra em geral e, em particular, as mulheres negras. Tal fato demonstra como o mito da democracia racial brasileira encobriu os efeitos do racismo, retificando-o e criando a possibilidade da reproducao das desigualdades entre os grupos raciais no Brasil. Contudo, isso tambem mostrou toda competencia teorica e politica com que as mulheres negras brasileiras formularam analises da realidade, demonstrando sua capacidade de reagir ao "lugar" social imposto pela classe dominante.

    Esse preambulo serve para atualizar o reconhecido papel das mulheres negras guerreiras no cenario da luta contra o racismo e o sexismo nos anos de 1970. Ressalto a importancia dos estudos quantitativos escritos por Hasenbalg e Silva(1979) e Hasenbalg (1988), que indubitavelmente so puderam ser materializados devido a contribuicao critica do Movimento Negro brasileiro ao mito da democracia racial.

    Essa pressao exercida pelos movimentos sociais, naquela ocasiao, fez com que a academia voltasse seu olhar para o racismo. Se os estudos sobre indicadores ganham o cenario academico, afirmando o carater estrutural da raca na producao da desigualdade, e inegavel a contribuicao de Lelia Gonzalez (1984), Beatriz Nascimento apud Ratts 2007 (e outros militantes na democratizacao e no enegrecimento da academia brasileira.

    Inicio minha reflexao concordando com o professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dr. Marcelo Paixao (PAIXAO, 2003; PAIXAO et al, 2010). Estamos de acordo quanto ao fato de que o aumento das demandas dos negros, no Brasil, resulta das infinitas denuncias de racismo e as proposicoes para seu combate, realizadas pelos movimentos negros. Resultam, tambem, da ampliacao de pesquisas e estudos dedicados a mostrar, empiricamente, os fundamentos raciais de nosso quadro de desigualdades sociais.

    Na Academia, a desconstrucao da ideia de que, no Brasil, as relacoes raciais sao democraticas, definida corretamente como mito, foi realizada nos anos 1950 por Florestan Fernandes e outros pesquisadores da Universidade de Sao Paulo (USP). Ainda assim, foram as contribuicoes de Carlos Hasenbalg (1979), e de Carlos Hasenbalg e Nelson do Vale Silva (1988) que efetivamente abriram um novo momento, marcado pelo uso sistematico de estatisticas e indicadores.

    Deste modo, a realidade das desigualdades raciais brasileiras passou a ser vista de forma mais objetiva, favorecendo uma ampliacao do grau de legitimidade do movimento negro; concomitantemente, tornando incompreensiveis os motivos pelo quais os afro-descendentes passam um seculo a margem de quaisquer politicas ativas de integracao social, por parte do Estado e, o que e pior, com anuencia da quase totalidade das organizacoes da sociedade civil brasileira. (PAIXAO, 2003, p. 11-12).

    Mercado de trabalho

    Marcelo Paixao (2003) parte do pressuposto de que os constrangimentos externos sofridos pela economia brasileira, o modelo economico adotado e a subordinacao do pais as diretrizes dos bancos multilaterais e dos credores externos, produziram um aprofundamento da...

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