Trabalho degradante e jornadas exaustivas: Crime e castigo nas relações de trabalho neo-escravistas

AutorWilson Ramos Filho
CargoDoutor em direito (UFPR). Professor no mestrado da UNIBRASIL e na UFPR (graduaçáo, mestrado e doutorado) encontra-se licenciado para fins de pós-doutoramento em Paris.
1 Introdução

Manchetes denunciam ocorrências de “trabalho escravo” com inquietante freqüência, contribuindo para que o Estado brasileiro tutele ações impeditivas e punitivas mediante programas governamentais específicos2, seja na agricultura, seja na agroindústria3, seja no trabalho urbano4. O presente artigo propõe uma análise a respeito da incidência tanto da legislação penal quanto da legislação trabalhista em esfera da exploração do trabalho humano que se identifique como “trabalho escravo contemporâneo”.

Do ponto de vista analítico, além do trabalho escravo rural contemporâneo, mais freqüentemente explorado e, por tal razão, noticiado, diferenciem-se duas outras espécies de “trabalho escravo urbano contemporâneo5“, a primeira, o trabalho prestado nas cidades em condições análogas à de escravo sem suporte contratual válido, e, a segunda, o trabalho oferecido nas cidades com suporte contratual prestado em situações análogas à de escravos, cuja descrição e tipificação encontram-se no Código Penal, em seu artigo 149, alterado pela Lei n.º 10.803/2003. A essa segunda espécie, prestado nas cidades, com suporte contratual válido, por trabalhadores em situação análoga à de escravos, propõe-se a denominação “neoescravidão urbana” ou a denominação de “trabalho urbano prestado em condições de neo-escravidão” (RAMOS FILHO, 2008).

Dentre as duas espécies de trabalho urbano contemporâneo, aquela que explora o trabalhador no âmbito das cidades, sem suporte contratual válido, recebe reprovação mais veemente tanto por parte da doutrina quanto pela jurisdição, eis que muitas vezes tal ocorrência amalgama-se na similaridade com o “trabalho escravo rural contemporâneo”, ou com o “trabalho escravo histórico”, ou seja, com o trabalho escravo, majoritariamente negro, aceito porque inoculado no inconsciente coletivo brasileiro, até 1888, como modo de trabalho lícito.

Nessa primeira espécie de trabalho em condições análogas à de escravo, para que se permaneça em apenas num exemplo, resta incluído aquele prestado por trabalhadores imigrantes (MENDES, 2003: 68), nas cidades, sem suporte contratual válido. Nessas relações de trabalho pré-capitalistas sonega-se ao trabalhador contrato de trabalho válido. As vítimas se sujeitam ao desabrigo do Estado e essa relação se consuma porque os próprios trabalhadores se reconhecem na condição de imigrantes clandestinos; assim, tacitamente se curvam ao jugo de tais formas de trabalho, abdicando até mesmo do inarredável, do inalienável direito de ir-e-vir, como freqüentemente ocorre no caso do trabalho rural escravo contemporâneo. Essa espécie será doravante denominada “trabalho escravo prestado por imigrantes”, para uma melhor e mais fácil identificação, muito embora existam outros tipos de relação a ela equiparáveis6.

Já o trabalho prestado nas cidades, com suporte contratual válido, executado por trabalhadores em situação análoga à de escravos, denominado, a partir deste momento, trabalho urbano em condições de neo-escravidão, não encontra melhor amparo, quer em razão de a jurisdição penal deixar de aplicar penas aos empregadores pilhados na conduta tipificada no artigo 149 do CP, quer porque a jurisdição trabalhista não vem condenando, como regra, tais empregadores ao pagamento de indenizações por ato ilícito (submeter empregados a condições de trabalho análogas à de escravos).

Tendo por objetivo secundário alterar essa realidade pretende este artigo que tal discussão se imiscua em esferas mais amplas, naquelas concernentes à efetividade dos direitos humanos, principalmente os chamados direitos humanos econômicos, sociais e culturais (ABRAMOVICH & COURTIS, 2002; PISARELLO, 2007) que, quando positivados, denominam-se, também, “direitos fundamentais sociais” (SARLET, 2006), dentre os quais se insere o Direito do Trabalho.

Estima-se que, em todo o mundo, 27 milhões de pessoas sujeitem-se ao trabalho escravo7, sendo que significativa concentração desse contingente parece incidir no Hemisfério Sul. A América Latina contaria com 1.320.000 pessoas sob tal condição, cabendo 25.000 destes ao Brasil (PIOVESAN, 2006: 149), excluindo-se desse quantitativo os milhares de casos de trabalhadores submetidos à situação de “neo-escravidão urbana”.

Tentativas de explicação para a remanescência de tais relações de exploração do trabalho pré-capitalista, que rumorejam no mundo além-fronteiras, também ecoam em justificativas nacionais, nem sempre bem-sucedidas, porém.

A literatura especializada brasileira registra parte das explicações atribuindo à inanição do Estado a prática dessa forma de escravidão, e os argumentos resvalam para a fiscalização/repressão por agentes responsáveis (DRTs, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho, e outros) que, incumbidos constitucionalmente de velar por relações de trabalho dignas, seja no campo, seja nas cidades, dispõem de pessoal em tão ínfima medida que a legitimação de tais direitos jamais se consuma. As “explicações” que se aduzem inculpam o próprio Estado pela ocorrência de trabalho escravo e vertem de fontes ideológicas potencialmente antagônicas: uma vertente de corte nitidamente liberal, ou mesmo, neoliberal, escamoteia a figura do delinqüente (empregador que submete seus empregados a tais condições de trabalho) por detrás da crítica estadofóbica8; outra nascente, que se apresenta como “crítica” ou “de esquerda”, na ânsia de reivindicar “mais Estado” (mais fiscalização, mais intervenção, mais aparelhamento dos órgãos) também empalma os verdadeiros agentes, praticantes do crime, ao focar sua análise na “falta de fiscalização” estatal sobre tais relações de trabalho.

Por outro lado, outra vertente busca explicações para tal remanescência, e responsabiliza a reduzida oferta de empregos que caracterizaria a atual fase de desenvolvimento do capitalismo, principalmente para os setores sociais com baixa qualificação profissional (FORRESTER, 1997). Segundo esta última linha de argumentação, para tais trabalhadores melhor ter qualquer trabalho, mesmo que em condições precárias, do que não ter nenhum trabalho (BASTOS, 2006: 368). Muito embora seja verdadeiro que “se o desemprego não existisse os capitalistas o teriam inventado” e a minguada oferta de empregos lograsse justificar a submissão voluntária ao regime econômico fundado na expropriação da mais-valia, tal posicionamento não legitimaria o propósito de induzir-se o empregado à aceitação de condições de trabalho pré-capitalistas; ou seja, a existência do “exército industrial de reserva” justificaria a exploração capitalista, mas não a précapitalista.

Todavia, até mesmo esta afirmação haverá de ser matizada, seja porque no mundo ainda não ocorreu o tal “fim dos empregos” (RIFKIN, 2004), seja porque, no caso brasileiro dos últimos seis anos, a oferta de empregos cresce em taxas significativamente superiores à média mundial. Para tal vertente, portanto, a “explicação” para a existência do trabalho escravo contemporâneo decorreria não da cupidez exacerbada dos delinqüentes9 (empregadores), mas das características próprias das vítimas da escravidão (por serem ignorantes e habitantes dos confins, por serem imigrantes, por serem pouco qualificados). Se a primeira corrente atribui ao Estado essa situação que se instala, na segunda responsabiliza as próprias vítimas, e novamente os reais agentes do crime se esfumam num insidioso anonimato.

Uma terceira forma de se avaliar tal processo atribui responsabilidades a quem por justiça deve responder pela ocorrência, ou seja, o agente da ação criminosa, aquele que pratica o crime, o ator por excelência dessa exploração sob neo-escravidão. Também esta visão descortina duas vertentes: a primeira irriga o regime de neo-escravidão mediante adoção de um “sujeito substitutivo”, e a segunda fecunda a produção de algo muito concreto: o lucro antijurídico que se obtém com a certeza da impunidade.

A primeira vertente entorna a “culpa” pelo neo-escravismo sobre o “mercado”, sobre a “globalização”, sobre a “concorrência internacional”10 ou sobre sujeitos substitutivos equivalentes, todos utilizados para mais uma vez escamotear a responsabilidade aos delinqüentes concretamente assim considerados (RAMOS FILHO, 2001). Atribuindo-se a culpa da neo-escravidão a entidades quase metafísicas, quase forças da natureza, o “inimigo” a ser combatido se volatiza, quando não “perdoando” condutas criminosas, ao menos ascendendo estrategicamente a limbos intangíveis. Nessa visão, curiosamente, podem ser incluídos tanto os, digamos, críticos nacionalistas (que atribuem mazelas em sua totalidade à globalização, aos mercados, ao neoliberalismo, à concorrência internacional, sempre em prejuízo das empresas nacionais), quanto os que indultam condutas criminosas encravando alegações nas mesmíssimas justificativas: os empregadores pilhados em práticas neo-escravistas estariam simplesmente “tentando sobreviver” nesse “mercado” competitivo. Para esse tipo de visão, portanto, a responsabilidade seria da “globalização”, para dizê-lo em uma única palavra, e como ninguém de bom-senso se oporia à globalização, todos, inermes, curvam a cerviz diante das “forças-da-natureza” e tudo o mais se anula, já que nada mais restaria ser feito.

A segunda vertente, pragmática, não utiliza sujeitos substitutivos. Atribui responsabilidade a quem efetivamente pratica condutas descritas abstratamente na lei (art. 149, CP) como criminosas: típicas, antijurídicas, culpáveis e puníveis. E “explica” a conduta criminosa pela conjugação de fatores: cupidez e expectativa de impunidade (ou, no mínimo, de lenidade do Poder Judiciário) por parte dos...

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