Responsabilidade civil por dano decorrente da prática de ato lícito: O dano emergente do protesto cambiário

AutorJoyceane Bezerra De Menezes - Uinie Caminha
Páginas172-186

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Introdução

O substrato ético da responsabilidade civil não se confina apenas no dever de in-denizar o dano decorrente de uma violação dolosa ou culposa de direito. A diversidade das atividades econômicas na sociedade moderna foi capaz de ampliar as ocorrências lesivas a ponto de suscitar o problema do dano anônimo, do dano sem culpa e ainda do dano decorrente da prática de ato lícito. Assim, para garantir o direito ao ressarcimento efetivo do lesado, admitiu-se a responsabilidade civil por dano decorrente da prática de ato lícito, dispensando com-pletamente o elemento culpa.

No que toca às atividades empresariais há uma incidência marcante da responsabilidade civil objetiva, assim compreendida como aquela que dispensa a culpabilidade e até mesmo a antijuridicidade para concentrar a atenção no dano. No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor é emblemático na imposição da responsabilidade sem culpa para assegurar o ressarci-mento ao cidadão consumidor ou equiparado, vítima de fato danoso. O Código Civil de 2002 trouxe dispositivo com o mesmo ânimo, como se verifica no art. 931.

Isto em face da constatação de que as atividades econômicas se desenvolvem com a possibilidade de ofensa danosa, mesmo quando o exercente haja tomado todas as medidas acautelatórias de segurança. São as externalidades que o processo produtivo industrial não consegue reduzir a zero, findando por lesionar o adquirente ou outro cidadão, nominado pela doutrina americana de bystander. Na dicção de Ulrich Beck (1998), vive-se a sociedade de risco, cuja característica central são os perigos invisíveis, transnacionais e transgeracionais gerados pela sociedade mega-industrial.

No contexto da sociedade de riscos, a responsabilidade civil não pode permanecer com os mesmos paradigmas oitocentistas e, finda por migrar para uma disciplina da reparação dos danos. Do que resultam as seguintes indagações: o fornecedor (em-

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presário) poderia, no exercício de sua ati-vidade econômica, regular e lícita, ser chamado a responder por dano causado ao consumidor? Que tipo dano suscitaria esta responsabilidade? Tratar-se-á de uma responsabilidade extracontratual ou contratual? Considerando a cláusula geral da boa-fé a que os contratos de consumo estão sujeitos, e os conseqüentes deveres anexos de segurança, informação e zelo, bem como o dever de garantir-se a segurança ao consumidor, imposto pelo art. 8o do CDC, eventual dano ao consumidor configuraria descumprimento do dever legal e/ou contratual e assim, importaria em dano decorrente de ilícito?

Este artigo discute o tema sob uma estruturação formal e material voltado à busca de respostas a estas indagações para, ao final, concentrar atenção na licitude do protesto cambiário. Parte de uma análise da teoria geral da responsabilidade civil, enfocando as hipóteses de responsabilidade civil por ato lícito, mesmo quando sua prática é admitida por lei. Por ilustração discute-se eventual dano emergente do protesto cambiário.

1. Responsabilidade civil - Da culpa à reparação efetiva dos danos

Os autores são concordes em que o verbete responsabilidade é bastante polis-sêmico. A raiz latina da palavra spondeo representava o vínculo existente entre os contratantes verbais, no direito romano (Aguiar, 2006, p. 4). Houaiss apresenta a seguinte definição: "(...) Em campos diversos como a moral, a filosofia e o direito, o vocábulo responsabilidade pode ser empregado, como o dever que tem o sujeito de arcar com os efeitos de seus atos e omissões".

Embora haja certa conexão entre o conteúdo da norma moral e da norma jurídica relativamente à responsabilidade pela reparação do dano, ao Direito interessa a manutenção da paz social e não necessariamente a perfeição espiritual do homem. Importa-lhe, muito mais, o efeito concreto das ações ou omissões do homem em face do outro e/ou da sociedade - qual seja, o dano que turba a vida social e atinge o indivíduo e/ou a coletividade. A norma jurídica deve impor a responsabilidade pela reparação, no campo civil, e aplicar ao ofensor, no campo do direito penal, a devida sanção.

No plano filosófico, a responsabilidade civil está profundamente relacionada ao elemento culpa. No Direito, esteve, tradicionalmente, associada ao dever de reparação por dano decorrente da prática de ato ilícito, em cuja definição está a culpabilidade.1 Os pressupostos da responsabilidade subjetiva seriam o dano, o ato ilícito, a imputabilidade e o nexo causal entre os dois primeiros. Como não há responsabilidade sem dano, imperiosa seria a sua ocorrência, manifesta pelo prejuízo material ao patrimônio do lesado ou por uma ofensa a valores não patrimoniais que lhe são caros. Mas a causa motriz do dano indenizável, nesta primeira análise, teria de ser uma ação ou omissão culposa de alguém dotado de sanidade suficiente para perceber a ili-citude do ato ou fato lesivo.

No Código francês de 1804, a culpa alimenta a responsabilidade civil. E nisto, essa codificação foi seguida por tantas outras que compõem a família romano-ger-mânica, a exemplo dos Códigos da Espanha (1889), de Portugal (1967) e do Brasil, em 1916, sob o reflexo do intenso individualismo político e econômico da doutrina liberal burguesa.

O Código Civil brasileiro, de 2002, manteve a regra geral da responsabilidade civil subjetiva, pautada na culpa do agente, muito embora preveja a responsabilidade civil sem culpa nos casos em que lei especial impõe, nas hipóteses de atividade de

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risco e em alguns casos pontuais que enumera.2

No Brasil, a culpa ainda integra o conceito de ato ilícito, conforme se depreende da dicção do art. 186.3 Os pressupostos do ato ilícito são a violação de direito por culpa associada à causação de dano patrimonial ou não patrimonial. Portanto, ato ilícito é a violação de direito decorrente de lei ou de instrumento contratual, por ação ou omissão voluntária (dolo), negligência, imperícia ou imprudência (culpa). A mera violação de direito não é suficiente para configurar o ato ilícito, é necessário que esta violação dolosa/culposa seja a causa determinante de um dano de natureza patrimonial ou não patrimonial, ou seja, é necessário o nexo causal entre a violação culposa ou dolosa e o dano.

Procurando extirpar a concepção individualista de um liberalismo ultrapassado defensor de um direito subjetivo absoluto, o atual Código Civil qualificou o abuso de direito como uma modalidade de ato ilícito, com o fim de assegurar a reparação dos danos dali decorrentes.4 Configura abuso de direito, o exercício do direito manifestamente excessivo em relação aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187).

Pedro Baptista Martins (1941, pp. 57-58) advertia sobre a importância da análise da função social dos direitos subjetivos, na qualificação do abuso. Pois na medida em que o exercício do direito subjetivo se desligasse da sua finalidade social ou econômica, ter-se-ia um exercício antifuncional, uma confiança legítima enganada, de modo que fugiam ao aspecto teleológico da norma protetiva, e apenas dissimulavam uma aparência de legalidade. A percepção do autor é absolutamente atual, e já materializava os ares da boa-fé que alimenta a disciplina das relações privadas com a tônica da solidariedade e eticidade.

Para atender a demandas atuais, que cresceram com o avanço do progresso tecnológico e industrial, e mesmo assim alcançam a legitimação do princípio romano do neminem laedere, a tradicional disciplina da responsabilidade civil se dilarga para representar a disciplina do ressarcimento, uma sistemática do direito dos danos. Da culpa provada, passou-se a admitir a culpa presumida5 para, posteriormente, dispensar-se a culpa na imputação da responsabilidade civil, permitindo a ocorrência daquilo que Savatier designou por hipertrofia da responsabilidade civil (Aguiar, 2006, p. 16). A responsabilidade civil absorveu toda a matéria de reparação de danos.

Inverteu-se a lógica da responsabilização: é imperioso não apenas evitar os danos, mas também minimizar os riscos (Andrade, 2005, p. 158). Ocorrido o dano, o importante não é identificar o culpado, mas

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localizar quem não evitou os riscos ou quem deverá repará-lo. O grande desafio da atual sociedade é a gestão dos riscos.

1. 1 Responsabilidade civil por dano decorrente de atividade lícita

A ampliação da responsabilidade civil objetiva tem fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional conformador e na concepção socializadora do direito dos danos. Mas como justificar o dever de reparar danos causados a terceiros, no exercício regular de um direito, em face do Direito Civil?

San Tiago Dantas (2001, pp. 309-309) e Ordoqui Castilla (1996, p. 13) entendem que o dever de reparar prevalece, mas não como responsabilidade civil e sim como obrigação de compensar dano decorrente de ato lícito.6 Pois a responsabilidade civil se caracteriza como um dever jurídico sucessivo que emerge da violação de um dever jurídico originário caracterizador da obrigação. Note-se que esta conceituação está profundamente imbricada ao conceito de ato ilícito (dever decorrente da violação de um dever jurídico originário).

A par das críticas formais apresentadas pelos civilistas acima, importa notar que a locução responsabilidade civil é empregada em várias codificações para também albergar o dever de reparação do dano causado por conduta lícita. Não importa aos ditames da justiça o aprisionamento do direito às categorias, produto abstrato da razão...

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