Decisões Penais nos Tribunais Brasileiros: Um Estranho Desprezo pela Dogmática

AutorVictor Cezar Rodrigues da Silva Costa - Leo Maciel Junqueira Ribeiro
CargoMestrando em Direito Penal (UFMG) - Graduando em Direito (UFMG). Sócio do IBCCRIM e membro do I Laboratório de Ciências Criminais em Belo Horizonte/MG
Páginas8-10

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Excertos

"A própria ideia de periculosidade pode nos conduzir a uma análise sobre aspectos subjetivos do agente, bem como sobre sua personalidade, o que nos remete a uma inadmissível criminalização por características pessoais e não por condutas criadoras de riscos juridicamente proibidos"

"Afastar a aplicabilidade do princípio da insignificância tendo como base a reiteração delitiva, além de representar aplicação clara de um direito penal do autor, significa permitir a dupla incriminação do agente pela conduta juridicamente reprovável"

A prática jurídica no Brasil exige de todo profissional no âm-bito do direito penal uma enorme consistência em seus argumentos dogmáticos. No entanto, essa exigência não encontra respaldo em grande parte dos tribunais brasileiros que parecem alheios a um arcabouço dogmático-analítico fruto de mais de 200 anos de investigações teóricas. Nesse contexto, os pressupostos apontados pela doutrina como idôneos a uma aplicação racional e controlável do direito penal deixam de ser utilizados, ocasionando uma responsabilização penal esvaziada de limites democráticos.

A título de exemplo, é o que se percebe na aplicação do princípio da insignificância, que mesmo em casos de furto simples tentado é recusada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)1 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)2. O principal argumento utilizado é que a

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reiteração delitiva torna inaplicá-vel o princípio da insignificância, de acordo com os quatro critérios de aplicabilidade citados pelo STF: "a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação: c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada"3.

O motivo pelo qual o princípio da insignificância não pôde ser aplicado, tendo como base os critérios citados, é a suposta periculosidade do agente, constatada de forma equivocada pela reiteração delitiva4. Afinal, muitas decisões subvertem os próprios critérios do STF: enquanto os critérios pare-cem apontar para a utilização da periculosidade da conduta, os tribunais passam a utilizar como periculosidade do agente, tendo em vista que a reiteração passaria a ser um elemento subjetivo no juízo de tipicidade.

Contudo, a própria ideia de periculosidade pode nos conduzir a uma análise sobre aspectos subjetivos do agente, bem como sobre sua personalidade, o que nos remete a uma inadmissível criminalização por características pessoais e não por condutas criadoras de riscos juridicamente proibidos5. A periculosidade do agente é, não obstante, um conceito subjetivo, vago, indeterminado e carecedor de preci-são cientifica, cuja fundamentação converge a uma inadmissível ideia de direito penal do autor. Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o direito penal do autor, podemos dizer que, ao menos em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma "forma de ser" do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o proibido e reprovável ou perigoso seria a personalidade e não o ato6.

Felizmente, a utilização equivocada da dogmática penal, no que tange ao princípio da insignificân-cia, não é compartilhada por todos os aplicadores do direito7. É a hipótese do julgamento de um caso de ato infracional análogo ao de-lito de furto qualificado (cujo va-lor da res furtiva era avaliado em R$80,00) no HC 112.400, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que decidiu de modo contrário:

Levando-se em conta que o princí-pio da insignificância atua como ver-dadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo...

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