Débitos fiscais e a recuperação judicial de empresas

AutorJosé Eli Salamacha
Páginas118-125

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1. A nova Lei de Falências e a recuperação de empresa

A Lei 11.101, de 9.2.2005, regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

A parte relativa à recuperação judicial surgiu com a finalidade de auxiliar a recuperação dos empresários e empresas que passam por graves dificuldades económicas e manteve parte da antiga legislação que regulava concordatas. Mesmo assim, trouxe importantes e significativas alterações nas relações entre credores e devedores, principalmente no sentido de viabilizar a recuperação da empresa.

Estudos demonstravam, na vigência do Decreto-lei 7.661/1945, que, das empresas que buscavam socorro na concordata judicial, somente 17% se recuperavam, enquanto as restantes 83% acabavam falindo. E -o que é pior - na maioria das vezes o valor arrecadado com a venda dos bens da falida não era suficiente sequer para pagar as dívidas trabalhistas e tributárias, e quem perdia com isso eram os demais credores, em especial a grande massa de credores quiro-grafários.

As leis brasileiras que vieram para regulamentar a matéria sempre surgiram com o intuito de proteger ou os credores ou os devedores, sem que houvesse uma preocupação mais profunda para preservar a empresa, que é a responsável pelos empregos e quem recolhe tributos.

Com a nova lei isso mudou. Seguindo a tendência do Código Civil de 2002, a preocupação principal da nova lei é a preservação da empresa, fundamentada na sua função social. No entanto, mesmo assim, no tocante à recuperação judicial ainda permanece existente um grande obstáculo ao sucesso da recuperação das empresas, em face do contido no art. 57 na Lei 11.101/ 2005: "Art. 57. Após ajuntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional".

É que a maioria das empresas que passa por dificuldades económicas - e, portanto, busca sua recuperação fundamentada na Lei 11.101/2005 - tem dívidas com a Fazenda, seja ela Municipal, Estadual ou Federal. Por isso, para o devedor é praticamente inviável cumprir o disposto no art. 57 da lei, apresentando as certidões negativas de débitos tributários.

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Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional projetos de lei visando a regulamentar a matéria, e em breve deve surgir legislação regulamentando o parcelamento de débitos fiscais em condições mais favoráveis que as atuais. No entanto, até que isso ocorra, caberá ao Poder Judiciário decidir se concede a recuperação judicial ao devedor se ele não cumprir o disposto no art. 57 da referida lei.

Esse ponto tem sido motivo de grande debate entre os especialistas na matéria. Em nosso entender, poderá o juiz deferir a recuperação judicial para o devedor que não apresentar as certidões negativas de débitos fiscais, fundamentado nos princípios constitucionais.

2. Importância dos princípios

O sistema jurídico brasileiro é fundamentado em princípios, que introduzem valores relevantes no próprio sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. Em razão disso, muitas vezes são "superiores" às regras jurídicas, pois, estando no topo do ordenamento jurídico e servindo como norteadores da interpretação das leis, eles servem como forma de solucionar litígios quando não forem encontradas normas específicas para aplicação a determinado caso concreto ou mesmo em conjunto com essas normas, imprimindo-lhes determinado significado.1

Para Teresa Arruda Alvim Wambier os princípios "desempenham, portanto, além de outros papéis, o de regras interpre-tativas, já que, se o ordenamento positivo, de certo modo, se cria e se estrutura a partir de princípios, a estes deve o intérprete recorrer quando extrai o sentido da regra positiva, para, com isso, dar coesão, unidade e imprimir harmonia ao sistema". E, ainda: 'Tarece-nos que princípios jurídicos são regras jurídicas no sentido lato, podendo, ou não, como observamos antes, ser positivadas".2

No mesmo sentido, José Miguel Garcia Medina posiciona-se entre aqueles que entendem que os princípios são guias utilizados pelo operador do Direito para atuar, eis que servem não somente para auxiliar o intérprete na formulação da solução corre-ta a ser aplicada ao caso concreto, como também para integrar lacunas.3

O princípio tem caráter de norma, e uma de suas características é seu dinamismo, pois atualmente o Direito encontra-se mais que nunca em constante evolução, e muitas vezes a lei é retrógrada para garantir o direito da parte, levando o juiz a buscar embasamento para sua decisão nos princípios, por serem normas jurídicas fundamentais do Direito4.

Em geral, um princípio não deve ser afastado para que outro seja aplicado, cabendo ao intérprete ou aplicador do Direito fazer esforço no sentido de harmonizá-los, reduzindo o alcance de cada qual. Assim, a aplicação de um princípio não ex-

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clui necessariamente a possibilidade da aplicação de outro, existindo a hipótese de que se identifiquem dois ou mais princípios colidentes para um mesmo caso.

No entanto, dependendo das características do caso, fazendo-se uma valoração, um dos princípios pode prevalecer sobre o outro, o que não impedirá que num caso futuro o princípio preterido venha a ser o aplicado; ou seja, conforme o caso concreto, um valor jurídico pode se sobrepor a outro.5

Nessas situações é que se aplica o princípio da proporcionalidade,6 que serve como verdadeiro ponto de equilíbrio na aplicação dos princípios, evitando que se valorize demasiadamente um princípio em detrimento de outro e permitindo que se possam preservar os direitos fundamentais7 previstos na Constituição Federal.

3. Recuperação judicial sem CND de tributos

A utilização dos princípios como fundamento de decisões judiciais vem crescendo dia a dia. Neste sentido é que Nelson Nery Jr. afirma que os princípios "existem e devem ser preservados: sua incidência é que tem sofrido e deverá continuar sofrendo adaptações, dependendo do grau de desenvolvimento jurídico que os adote".8

E exatamente neste sentido, de utilizar princípios como fundamento de decisões judiciais, que o Juiz Luiz Henrique Miranda, da Ia Vara Cível da comarca de Ponta Grossa/PR, proferiu uma das primeiras decisões no país - se não a primeira -, deferindo a recuperação judicial de uma madeireira,9 sem que a mesma tivesse apresentado as certidões negativas de débitos tributários, conforme exigência contida no art. 57 da Lei 11.101/2005.

E a decisão, muito bem fundamentada, principalmente nos princípios constitucionais, merece ser aqui reproduzida em grande parte, pois pode servir com ponto

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de partida para firmar entendimento juris-prudencial a respeito da necessidade, ou não, da apresentação obrigatória de certidões negativas de débitos tributários para se obter o deferimento de pedido de recuperação judicial, nos termos da Lei 11.101/ 2005.

Assim se pronunciou o Magistrado:

(...). Enfim, aprovado o plano de recuperação, pelos credores, resta verificar se a autora merece ver deferido seu pedido, uma vez que ela não cumpriu com a exigência ditada pelo art. 57 da lei que rege a matéria.

Reza, a propósito, esse dispositivo: "Art. 57. Após ajuntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção dos credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos do arts. 151, 205, 206 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário...

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