Débito de prejuízo a conta de sócio

AutorCarlos Alberto de Ulhôa Canto
CargoProfessor em Cursos de Pós-Graduação promovidos pela Universidade Cândido Mendes e pela Associação Brasileira de Direito Financeiro. Advogado
Páginas37-54

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1. Muito já se disse e escreveu sobre o tratamento fiscal dos débitos de prejuízos à conta de sócios1("DPCS"), mas normalmente com o foco voltado para a pessoa jurídica cujo prejuízo é eliminado ("Beneficiária").

2. Há consenso na doutrina e na jurisprudência com relação ao fato de que o acréscimo patrimonial apresentado pela Beneficiária não deve ser computado no seu lucro real, pois essa é a conclusão que necessariamente se extrai do art. 64, § 3º, do Decreto-lei ("DL") n. 1.598, de 26.12.1977, reproduzido pelo art. 509, § 2º, do Regulamento do Imposto de Renda baixado pelo Decreto n. 3.000, de 26.3.1999 ("RIR/99"):

Art. 509. O prejuízo compensável é o apurado na demonstração do lucro real e registrado no LALUR (Decreto-lei n. 1.598, de 1977, art. 64, § 1º, e Lei n. 9.249, de 1995, art. 6º, e parágrafo único).

(...).

§ 2º. A absorção, mediante débito à conta de lucros acumulados, de reservas de lucros ou capital, ao capital social, ou à conta de sócios, matriz ou titular de empresa individual, de prejuízos apurados na escrituração comercial do contribuinte não prejudica seu direito à compensação nos termos deste artigo (Decreto-lei n. 1.598, de 1977, art. 64, § 3º).

3. Como se observa no dispositivo legal acima transcrito, a absorção do prejuízo mediante débito à conta de sócio não prejudica o direito à compensação (fiscal) do prejuízo. Ora, se o montante do prejuízo debitado à conta do sócio fosse computado no lucro real - base de cálculo imposto de renda de pessoa jurídica ("IRPJ") - a compensação do prejuízo fiscal estaria prejudicada, pois a receita tributável decorrente desse procedimento faria com que o prejuízo fiscal desaparecesse. E não é isso o que o § 2º do art. 509 do RIR/99 prevê.

4. Há quem sustente que o DPCS guarda total identidade com uma das modalidades de redução de capital previstas no art. 173 da Lei n. 6.404, de 15.12.1976 (vigente Lei das Sociedades Anônimas - "LSA"), qual seja, aquela em que a redução de capital se dá mediante sua absorção por prejuízos acumulados.2Como se sabe, o capital social

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pode ser alterado mediante a capitalização de créditos de acionistas (art. 171, § 2º, da LSA); assim, segundo essa linha de raciocínio, o DPCS nada mais representaria do que a utilização de crédito de sócio na eliminação de prejuízos da Beneficiária, sem que o referido crédito transitasse formalmente pela conta de capital, como ocorreria se a absorção dos prejuízos fosse precedida da capitalização do crédito.

5. Os recursos transferidos às companhias em realização de aumentos de capital (inclusive em razão da capitalização de créditos) não transitam pela conta de resultados. Não há, pois, geração de receita para a pessoa jurídica nem, consequentemente, incidência de IRPJ; isso é tão sabido e pacífico que prescinde de maiores explicações. Para os que equiparam o DPCS à modalidade de redução de capital referida no item 4, a não incidência de IRPJ sobre a eliminação de crédito de sócio - sem nenhuma contrapartida, por parte da Beneficiária - seria mera consequência da identidade entre as situações em confronto.

6. Tenho para mim, contudo, que o que elimina a incidência de IRPJ sobre o DPCS é o art. 64, § 3º, do DL n. 1.598/1977, referido no item 2, e não o fato de a redução de capital para absorção de prejuízos e o DPCS serem negócios jurídicos iguais. Com efeito, no meu modo de ver, o DPCS tem natureza de um perdão de dívida, embora não seja esse o entendimento que tem prevalecido em nossos tribunais administrativos.

7. O DPCS tem como resultado final a baixa de uma obrigação da Beneficiária sem que ocorra o seu pagamento, nem mesmo em ações representativas de aumento do capital da Beneficiária; importa, simplesmente, em que se eliminem crédito de sócio, de um lado, e prejuízo contábil da Beneficiária no mesmo valor, de outro.

8. Assim como no perdão de dívida, o DPCS gera um ganho para a Beneficiária, do qual resulta um aumento de seu patrimônio líquido no valor da obrigação eliminada. Ocorre, contudo, que a legislação do IRPJ confere à hipótese tratamento fiscal diverso, aí sim, muito provavelmente, porque o sócio da Beneficiária poderia capitalizar previamente seu crédito e, em seguida, utilizar parte do novo capital social (em montante equivalente ao do crédito capitalizado) para absorver o prejuízo. Nessa hipótese, não se poderia falar em perdão de dívida, pois o credor teria recebido seu crédito em quotas ou ações da Beneficiária, quando seu crédito tivesse sido capitalizado; não obstante, para a Beneficiária, o resultado final da operação seria idêntico ao do DPCS.

9. O fato apontado no item anterior de o sócio poder eliminar o prejuízo da companhia mediante capitalização de seu crédito sucedida de absorção de prejuízos deve ter levado o art. 64, § 3º, do DL n. 1.598/1977 a conferir à redução de passivo de pessoas jurídicas mediante operação de DPCS, tratamento idêntico; mas isso não quer dizer que sejam figuras jurídicas iguais.

10. O tratamento contábil do DPCS, pela Beneficiária, não está normatizado e há pouca doutrina sobre a matéria. Não obstante, o procedimento muitas vezes utilizado é o lançamento do prejuízo contábil a débito da conta do sócio, sem trânsito pela conta de resultados. A consequência desse procedimento é sua neutralidade fiscal, admitida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais ("CARF") em várias decisões3e por parte da doutrina, como Hiromi Higuchi, segundo o qual, no caso de "prejuízo contábil absorvido pelos sócios não há contabilização de receitas porque o valor dos recursos recebidos é con-

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tabilizado a débito da conta Caixa ou Bancos e a crédito da conta que registra o prejuízo. Com isso, não há a incidência do imposto de renda e nem da CSLL"4(Imposto de Renda das Empresas: Interpretação e Prática, 39ª ed., São Paulo, IR Publicações, 2014, p. 449).

11. Tenho sérias dúvidas sobre a viabilidade do procedimento contábil referido no item anterior, do qual resultaria a ausência de tributação independentemente da existência do art. 64, § 3º, do DL n. 1.598/1977. A conta de lucros ou prejuízos acumulados é reflexo do desempenho da companhia em determinados períodos de tempo - os exercícios sociais. Diversamente do que ocorre com outros grupos de contas ativas e passivas, ela não é integrada por itens patrimoniais, ou seja, por bens ou direitos que possam ser convertidos em moeda, ou por obrigações que gerem desembolsos com seus pagamentos. O DPCS deve ser encarado dentro deste contexto: o sócio não pode simplesmente assumir os prejuízos, como se eles correspondessem a uma obrigação, e, desta forma, excluí-los do balanço da companhia.

12. A eliminação de prejuízo mediante DPCS há, portanto, que resultar da prática de algum ato, por parte do sócio, que favoreça a companhia, gerando para ela ingresso - sem custo - cujo montante possa absorver o prejuízo, como a liberação da companhia do pagamento de uma obrigação. Em se tratando de DPCS, o ingresso é mera decorrência da eliminação de uma obrigação da companhia por ação de seu credor, no caso seu sócio. Ou seja, ocorre um perdão de dívida por parte do sócio, que renuncia ao direito de receber seu crédito em benefício do saneamento da companhia.

13. Passando à análise do DPCS com o foco voltado para o sócio credor, a primeira conclusão a que se chega, de certa forma óbvia, é a de que a operação acarreta uma perda para o mesmo, indedutível por decorrer de mera liberalidade. Entretanto, esse entendimento - correto, no meu modo de ver - não é tão pacífico como parece, pois não se ajusta à tese de que haveria, no DPCS, a realização implícita de uma prévia capitalização do crédito.

14. Face à já demonstrada semelhança entre, de um lado, um DPCS e, de outro, um aumento de capital para subsequente absorção de prejuízo, há quem sustente que, na verdade, o DPCS é um contrato misto, resultante da fusão, em um só ato, de um aumento de capital (integralizado por crédito contra a sociedade detido pelo sócio) e de uma redução de capital para absorção de prejuízos. Há quem afirme, em defesa dessa tese, que, embora o aumento e a redução do capital não ocorram de forma efetiva, no DPCS, seus efeitos devem ser análogos.

15. A assertiva constante da parte final do item anterior põe em dúvida o acerto da conclusão apresentada no item 13, qual seja, a de que o DPCS geraria sempre uma perda para o sócio credor. Isso não ocorreria, por exemplo, se o sócio tivesse adquirido de terceiros, com deságio, crédito contra a Beneficiária e a saneasse mediante uma operação de DPCS. Se se tratasse de um perdão de dívidas, o sócio sofreria efetivamente uma perda; mas, se os efeitos da operação fossem análogos aos de uma capitalização de crédito seguida da absorção de prejuízos, não se poderia falar em perda (ao menos em termos fiscais) quando o sócio houvesse adquirido o crédito com deságio. Nesse caso, a diferença verificada entre o custo de aquisição do crédito e o valor de face da obrigação eliminada com o DPCS seria tratada como ganho (tributável) do sócio, pois ele teria convertido seu crédito em ações emitidas por valor superior ao custo do seu crédito.

16. No meu modo de ver, no que tange especificamente à Beneficiária, o tratamento

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fiscal do DPCS deveria mesmo ser idêntico ao de um aumento de capital sucedido da absorção de prejuízos pelo capital social, embora não me pareça correto afirmar que tenham efetivamente ocorrido, implicitamente, um aumento de capital e uma subsequente redução, para absorção de prejuízos. Não vejo no DPCS características de um negócio oneroso, como são os aumentos de capital resultantes da conversão créditos e, por isso, entendo que, não fosse disposição expressa de lei (o art. 509, § 2º, do RIR/99), o acréscimo patrimonial dele resultante seria tributado na Beneficiária como se fosse um simples perdão de dívida.

17. Com efeito, o sócio que tem um crédito contra uma pessoa jurídica sem prejuízos contábeis pode capitalizá-lo e, desta forma, aumentar o...

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