O debate político no espaço micropúblico

AutorErinaldo Ferreira do Carmo
CargoDoutor em Ciência Política pela UFPE. Diretor Acadêmico da Faculdade Metropolitana da Grande Recife
Páginas61-72

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Apresentação

A primeira citação do espaço micropúblico, feita por John Keane (1995), o concebe como espaço público restrito ao nível local, a esfera pública localizada e limitada a um número reduzido de participantes. Posteriormente, uma nova citação do espaço micropúblico é feita por Néstor Canclini (1999), a partir da discussão sobre a formação das identidades culturais dos grupos sociais, considerando as influências externas de outros grupos e, principalmente, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural. Esta concepção de micropúblico, difundida por Canclini, tem o sentido de cultura local, restrita a grupos específicos, em seu enfrentamento da cultura global, difundida pela indústria cultural e pelos meios de comunicação de massa.

Neste trabalho mantivemos o micropúblico como cultura endógena de grupos limitados, mas não o adotamos como opositor à cultura de massa, e sim consumidor desta cultura. E acrescentamos a ele mais duas questões relevantes, além da questão do consumo midiático: a questão urbana, considerando as grandes cidades, onde a circulação de informações é mais intensa (Castells, 1983), e a questão política, considerando a existência do debate, imprescindível à existência do espaço público (Arendt, 1999). Portanto, o micropúblico é empregado aqui com o sentido de espaço público urbano midiatizado, onde os debates acontecem em grupos limitados em número de membros que, apesar de não terem a políticaPage 62 como ponto central para uni-los, são incentivados por discussões midiáticas e se envolvem no debate público, ainda que reunidos em espaço privado.

Neste contexto, os grupos locais e os grupos de representação ganham papel de destaque no debate político e na formação da opinião do eleitor, um contrapeso ao domínio dos meios de comunicação de massa. Com isso, não apenas a mídia e as instituições políticas, mas também os grupos locais e de representação apresentam e discutem os temas políticos.

1. O espaço público

Correspondente ao espaço destinado ao livre exercício da ação política, assegurado pelas leis que definem os limites da esfera pública, o espaço público é o espaço comum aos indivíduos e suas relações intersubjetivas, sem se confundir com os espaços tangíveis e as instituições.

O conceito de espaço público, apresentado por Hannah Arendt, inspirado no conceito de vita activa de Aristóteles,1 reside nas experiências da polis grega e da res publica romana. Compreende o espaço definido e duradouro para a ação coletiva, interativa e organizada dos cidadãos em torno das questões públicas. Nele, a política deve ser norteada pela preservação da vida, estando baseada em quatro pilares: a liberdade; a ação conjunta; a isonomia; e a comunicação.

1) a liberdade – A polis grega corresponde a um espaço público marcado pela liberdade, onde é permitida a convivência pacífica entre diferentes interesses, mediante o convencimento mútuo, sendo o debate público o meio, por excelência, da ação política. A liberdade dos cidadãos ocorre em termos de oportunidade de participação política, principalmente pela igualdade à palavra, sem diferenciação entre governantes e governados. Para Arendt, ao participar desta ação pública o cidadão expressa sua total liberdade, pois a liberdade situa-se, exclusivamente, no espaço político (1999, p. 40).

2) a ação conjunta – O agir não ocorre no isolamento, sendo uma atividade coletiva e interativa, baseada na pluralidade humana. É através da ação política, com a utilização do discurso em público, que os cidadãos podem conquistar a excelência, fato que não pode ocorrer no isolamento, nem no espaço limitado da família, por necessitar da audiência formada pela circunvizinhança. Em Arendt, a ação (práxis) é baseada na iniciativa e realizada sempre em conjunto (1999, p. 190).

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3) a isonomia – A igualdade dos gregos na polis era a essência da liberdade. Como a liberdade existe apenas no espaço público, necessita da condição de igualdade entre seus cidadãos para que estes possam participar livremente. É certo que apenas uma parcela da população fazia parte do espaço público, já que os escravos, os estrangeiros e as mulheres não eram cidadãos, mas entre os cidadãos era preservada a condição de igualdade de participação política. Assim, de acordo com Arendt, a polis não era uma democracia, nem um governo da maioria, mas uma isonomia, onde a noção de mando estava ausente (1988, p. 24).

4) a comunicação – O espaço público arendtiano está marcado, essencialmente, pelo poder dialógico, em oposição à interpretação do poder como dominação. O pensamento político é representativo e leva em conta as diferentes perspectivas de mundo em busca do consenso, o que ocorre apenas através do debate público, reafirmando a noção de poder político como poder dialógico, comunicativo, de persuasão. Com isto, a participação política, pela liberdade da palavra, só ocorre no espaço público, já que na esfera privada o poder é coercitivo e verticalizado pela autoridade. Neste sentido, para Arendt, a comunicação com o público permite a excelência, correspondente ao que os romanos chamavam de virtus,2 já que “toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na intimidade” (1999, p. 58).

O que torna vivo o espaço público, locus dos discursos e da publicidade dos atos, não é apenas o espaço físico, mas principalmente o espaço dos cidadãos, da organização da sociedade em torno da ação e do discurso voltados para as causas públicas. O espaço público é formado, portanto, pelo espaço onde as ações dos cidadãos afetam outros cidadãos que, por sua vez, também são capazes de reações, criando um espaço para apresentação e discussão das questões públicas, do discurso conjunto. Onde quer que os homens vivam juntos forma-se o que Arendt chama de teia de relações humanas (1999, p. 196).

O espaço público, de acordo com Jürgen Habermas, é um fenômeno social elementar, assim como a ação, o ator, o grupo e a coletividade, podendo ser descrito como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões. Este espaço se reproduz através do agir comunicativo e nele os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados. Com isso, o espaço público pode ser compreendido como uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, não separado do espaço social gerado no agir comunicativo.

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A pluralidade de sentidos atribuídos ao espaço público sugere o que Habermas chama de “síndrome significacional de público”. Algumas vezes ele aparece como oposição ao privado; muitas vezes...

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