Das terras devolutas

AutorMelina Lemos Vilela
Páginas97-127

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O cântico da terra

Cora Coralina

Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte.Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranquila ao teu esforço.

Sou a razão de tua vida. De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida. Só em mim acharás descanso e paz.

Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu. Teu arado, tua foice, teu machado. O berço pequenino de teu filho. O algodão de tua veste e o pão de tua casa.

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E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás. Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos.

No capítulo anterior foi feito um relato do descobrimento do Brasil até os dias atuais, de forma a entender como a propriedade no Brasil foi formada, compreendendo melhor a noção do que seriam as terras devolutas. De forma simplificada, pode-se afirmar que seriam as terras devolvidas à Coroa Portuguesa ou à União, por descumprimento do contrato de sesmaria, quando essas terras tornavam-se públicas novamente. Mas também pode-se encontrar alguns doutrinadores que afirmam serem terras devolutas as terras vagas, abandonadas, não utilizadas nem pelo particular e nem pelo Poder Público.

2. 1 conceito

Terras devolutas são as terras doadas mas devolvidas à Coroa ou à União, por não terem sido devidamente utilizadas, constituindo assim como uma das espécies do gênero terras públicas.

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As terras devolutas foram categorizadas como bens dominicais, o que sugere que esses bens eram disponíveis, pelo simples fato de não terem, em princípio, qualquer destinação pública.

Pode-se dizer que o conceito de terras devolutas já era conhecido na Roma Antiga como bem não alienável sem prévia autorização do Imperador. Eram terras que haviam pertencido ao patrimônio público, e saíram dele por destinação específica e retornaram por não terem sido aproveitadas, sendo assim devolvidas ao acervo público.

O termo “devoluto”, portanto, era usado pelos Romanos para designar as terras do Império que se encontravam vagas, sem uso, e por isso mesmo, deveriam ser ocupadas, mas que seriam devolvidas ao Imperador se não utilizadas economicamente.

Cretella Junior, ao tratar sobre terras devolutas e terrenos devolutos, afirma que o termo “devoluto” “é oriundo do latim devolutu(m), particípio do verbo devolvere, que significa desempenhar, precipitar, rolar de cima, afastar-se de” e que ao ser empregado no Direito Público, significa “indicar, residualmente, as terras que se afastam do patrimônio das pessoas jurídi-

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cas públicas sem se incorporarem, por qualquer título, ao patrimônio dos particulares.122Hely Lopes Meirelles conceitua terras devolutas como “todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo Poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos”.123O Prof. Fajardo Nogueira de Souza definiu terras devolutas como: “As terras que, com o descobrimento, se incorporaram ao patrimônio da Coroa Portuguesa e, com a Independência, passaram ao domínio nacional e não se encontram no domínio particular, por título legítimo e nem constituem próprios da União ou dos Estados ou dos Municípios”.124Pontes de Miranda afirma que “terras devolutas são as terras devolvidas ao Estado (União, Distrito Federal, Estado-Membro, Território ou Município), se não estão

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ainda ocupadas, ou se estão na posse de particulares125

e continua afirmando que nem todas as terras que deixam de ser de pessoas físicas ou jurídicas se devolvem ao Estado, ou seja, o que não foi devolvido, não é devoluto.126Quanto às terras que a ninguém pertence e sobre as quais ninguém tem poder, o Estado – como qualquer outra pessoa, física ou jurídica – delas pode tomar posse”.127Odete Medauar dispõe que “terras devolutas são aquelas que não se acham aplicadas a algum uso público nem se encontram no domínio particular por qualquer título legítimo.128Há duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais que contradizem a matéria sobre o domínio da União sobre as terras devolutas. A primeira considera toda terra sobre a qual não recai título

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registrado da União como devoluta129 e a segunda considera que nem todo bem imóvel que não estiver registrado em nome de particular possa ser tido como terra devoluta, pois a falta de registro não caracteriza domínio público. Portanto, é necessário ao Poder Público provar que o imóvel é de sua propriedade.130O Tribunal Regional Federal da 4ª Região em recente decisão entendeu que “a caracterização da área como terra devoluta constitui fato impeditivo do direito do autor, e, como tal, o ônus da prova incumbe ao réu131132

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Paulo Torminn Borges tenta identificar quais são as terras devolutas, afirmando “que não são devolutas apenas as terras que nunca vieram às mãos de particulares, e as que não estejam empregadas em algum fim especial pelo Poder Público”.133Consideram-se devolutas as terras que, não sendo bens próprios, nem aplicadas a algum uso público,

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federal, estadual, territoria, ou municipal, não se incorporaram regular e legitimamente ao domínio privado134Nos Anais do Simpósio Internacional de Experiência Fundiária consta como “devolutas as terras que, não sendo bens próprios nem aplicadas a algum uso público, federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporaram regular e legitimamente ao domínio privado”.135Em 1946, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, ao dispor sobre bens imóveis da União, incluiu as terras devolutas no art. 1º, alínea “f” e conceituou terra devoluta em seu art. 5º, e que será tratado no item seguinte.

Um fato importante mencionado neste trabalho e que deve ser observado é que, na hipótese de não haver registro da propriedade em cartório competente, não significa dizer que toda terra que não seja de particulares pertença ao domínio público.

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2.2. Das terras devolutas no Brasil

Por meio de 2 (duas) Cartas Régias, a de 12 de novembro de 1698 e a de 20 de janeiro de 1699, começou-se a definir quais seriam as terras que eram de interesse da Coroa, sendo que a primeira tratava dos terrenos de marinha e a segunda de quaisquer outras terras que interessavam à Fazenda.136A mais importante lei que trata dessa matéria pela primeira vez no Brasil e que serve de norte até os dias atuais para a matéria é a Lei n. 601, de 1850, já mencionada em capítulo anterior. Mas registrese aqui que essa lei não foi revogada pela Constituição de 1891.

Conforme Decreto nº 4.105, de 22 de fevereiro de 1868, regulando a concessão dos terrenos de marinha, dos reservados nas margens dos rios e dos acrescidos natural ou artificialmente, os quais, segundo entendimento de Pontes de Miranda, não seriam considerados como terras devolutas137.

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Tal entendimento foi confirmado quando o Senado Federal, em 31 de agosto de 1892, repeliu o projeto de incluir sob o conceito de terras devolutas os terrenos de marinha, ribeirinhos e acrescidos, e também, posteriormente, em 21 de julho de 1896, quando houve veto do então Presidente da República, Prudente José de Moraes e Barros, em resolução do Congresso Nacional.138Por meio da Lei nº 3.397, de 24 de novembro de 1888, foram concedidos a cada uma das Províncias do Império, 360.000 hectares de terras devolutas, para serem aplicadas na colonização ou vendidas a particulares, em lotes previamente medidos e demarcados.139

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Observa-se que, no começo do século XIX, mais especificamente em 7 de abril de 1904, nos termos do Decreto n. 5.188, foi incorporado o território do Acre ao Estado Brasileiro, porém somente com o Decreto n. 2543-A, de 5 de janeiro de 1912, houve recomendação para que se efetuasse a discriminação e o consequente reconhecimento da posse das terras do Território Federal do Acre, para que posterior-mente fossem expedidos os títulos pela União, conforme disposto no art. 10 do referido Decreto.140

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Em 29 de dezembro de 1906 foi criada a Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, por meio do Decreto nº 1.606, para tratar dos serviços relativos às terras públicas, tais como providenciar os registros públicos e proceder a sua demarcação.141Houve uma tentativa de criar novos decretos imitando ou limitando a Lei de Terras, de forma a regulamentar as terras devolutas da União, tais como os Decretos nº 10.105 de 05 de março de 1913 e 10.320 de 07 de julho de 1913. No entanto, esses decretos foram revogados pelo Decreto nº 11.485, de 10 de fevereiro de 1915, até que se organizasse a lei de terras, que seria submetida ao voto do Congresso Nacional.142

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O Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União, ainda em vigor, enumerou em seu art. 1º um rol, identificando quais são os bens considerados como da União143, e posteriormente, na seção II da Legis-

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lação, conceituou esses bens. Sobre o conceito de terra devoluta, matéria deste trabalho, esse decreto o conceituou em seu art. 5º, abaixo transcrito.

Art. 5º São devolutas, na faixa...

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