A harmonização das normas sobre licitação nos estados partes do Mercosul

AutorProf. Fabrício M. Motta
CargoProcurador do Ministério Público junto ao TCM/GO. Mestrando em Direito Administrativo na UFMG. Professor de Direito Administrativo em Goiás.
Páginas1-26

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I Introdução

As últimas décadas do século passado foram testemunhas de movimentos sociais, culturais e econômicos que deram novo rumo à história, como ciência dinâmica que a cada dia se renova. A vida do cidadão comum, residente em qualquer quadrante do planeta, passou a ser afetada por acontecimentos próximos e distantes, quase sempre alheios à sua esfera de influência e de conhecimento. Neste contexto, marcado ainda pela velocidade imprimida à informação e ao conhecimento, expectativas e boatos em algum ponto do globo têm o condão de derrubar bolsas de valores e governos, mudar complexas políticas econômicas e determinar os movimentos do capital. Essa descrição é uma apreciação simplista do que se convencionou chamar de globalização.

Na atualidade, e pelas razões acima ditas, a grande maioria das economias desenvolvidas e das economias emergentes faz parte de algum sistema de integração que, qualquer seja seu grau de intensidade, visa à obtenção de maior prosperidade e crescimento a seus participantes.

A integração, como a amizade, se concretiza entre regiões ou pessoas semelhantes por natureza ou que se tornam similares pela aproximação e Page 2 convivência. Os quatro países que compõem o Mercosul sempre tiveram dupla razão para se integrarem: tanto a natureza ou geografia quanto a contínua aproximação por motivos de ordem política, econômica e cultural. A aspiração a essa integração, no passado, se deu até por ambições políticas de anexação de territórios. Nota-se que a região é densamente habitada e as fronteiras são vivificadas pelo contato entre as populações, estabelecido com relativa facilidade. Tudo une a região, nada a separa senão a competição como processo humano natural de interação e de expansão de mercados, que, trabalhada, produz a cooperação na busca de interesses e objetivos comuns.

A antiga proposta de integração comercial entre os países da América Latina está se concretizando, em condições favoráveis, com a criação do Mercosul, restrito, inicialmente, a Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Com o intuito de ampliar as atuais dimensões dos mercados nacionais, o processo de integração objetiva trazer consigo a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países.

Inicialmente, é importante estabelecer, com apoio na lição de Roberto Luiz Silva1, uma escala tipológica com as formas de cooperação entre Estados, identificando categorias de acordo com o grau de interligação entre eles, que desta feita se apresenta de forma crescente :

  1. Área de Tarifas Preferenciais - caracterizada pela redução parcial de tarifas alfandegárias entre duas ou mais nações;

  2. Zona de Livre Comércio - marcada pela supressão e eliminação de direitos aduaneiros entre os países envolvidos;

  3. União Aduaneira - acarreta a adoção de uma tarifa externa comum e, em conseqüência, a adoção de um tratamento comercial uniforme em relação aos bens provenientes de países estranhos;

  4. Mercado Comum - consistente na liberação de todos os fatores produtivos, sendo livre a circulação de produtos, pessoas, serviços e capitais;

  5. União Econômica e Monetária - marcada pelas características existentes na categoria anterior, acrescidas da coordenação das políticas econômicas dos países membros, em um sistema de controle multilateral. Além disso, destaca-se a existência de organismos supranacionais, sustentados por normas comunitárias. A comunidade, neste caso, é a única emissora de uma moeda comum.

Para o correto entendimento do presente estudo, cumpre-nos registrar a existência de divergências terminológicas entre os estudiosos do direito internacional no tocante às diferentes formas de inter-relacionamento entre os Estados para a consecução de interesses comuns.

Nesse sentido, alguns autores, entre eles Heber Arbuet-Vignali e Armando Álvares Garcia Júnior, costumam referir-se a "processo de integração" como gênero que abarcaria as espécies "cooperação" e "comunidade", baseando-se tal distinção nos diferentes graus de intensidade Page 3 existentes no relacionamento entre os Estados. De outra forma, doutrinadores como Carmem Lúcia Antunes Rocha e Roberto Luiz Silva referem-se a "integração" e "comunidade", situando-os em pontos sucessivos, como se verá em seguida. Doravante, passaremos utilizar esta última terminologia, visando privilegiar a didática da exposição, sem adentrar o campo formalista das diferenças de denominação, com a certeza de que as diferenças entre os processos restarão demonstradas ao longo do presente estudo.

II Notas sobre o Mercosul

O projeto de integração da América Latina é tão antigo quanto a formação dos Estados Nacionais na região. Pelo menos em relação à América Hispânica, desde a época de Simon Bolívar houve um contínuo sentimento em prol da reunificação das ex-colônias para formação de uma comunidade supranacional. A primeira tentativa racional e efetivamente estudada para a integração econômica da região foi obra da Comissão Econômica para a América Latina - CEPAL, órgão subordinado ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, ao estimular a integração regional com ênfase especial para a idéia de um Mercado Comum. Após a Segunda Grande Guerra, com a constituição de associações latino-americanas visando ao crescimento de áreas de influência econômica e comercial, a idéia tem aumento significativo em sua expressão.

O passo inicial para esse processo de integração latino-americana foi dado com a criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio - ALALC, em 1960, que abrangia todos os países da América do Sul, exceto as Guianas, e o México. O objetivo principal da ALALC era a constituição de uma zona de livre comércio, que seria um catalisador no processo de desenvolvimento da região. Essa Associação durou vinte anos, e a razão de seu insucesso pode ser explicada, segundo Florêncio e Araújo, pela rigidez dos mecanismos estabelecidos para a liberalização comercial e pela instabilidade política da região2.

Segundo tais autores,

todos os países membros praticavam uma política de tarifas elevadas [...]. A tentativa de reduzir as tarifas no comércio entre eles ia, assim, na contracorrente de sua política comercial global. Os países só estavam dispostos a engajarem-se na abertura comercial no contexto da ALALC até um certo ponto. [...] Todos os países queriam abrir o mercado dos demais para os seus produtos, mas nenhum queria abrir o seu próprio mercado.3

Os mesmos países albergados na ALALC criaram para substituí-la, em 1980, a Associação Latino-Americana de Integração - ALADI. A diferenciação maior entre as duas associações estava no fato de que a ALADI visava à liberalização comercial entre seus componentes, de forma progressiva, permitindo mesmo acordos firmados apenas entre alguns dos países participantes, sem a necessária participação de todos. A assinatura de acordos Page 4 bilaterais, permitida pelo tratado que instituiu a ALADI, em muito contribuiu para a integração da região. Deve ser ressaltado que a Associação tem como objetivo, a longo prazo, a instituição de um Mercado Comum entre os países signatários.

Posteriormente, os principais passos rumo à integração latino-americana foram dados por Brasil e Argentina, por meio de instrumentos como o Programa de Integração e Cooperação Econômica, de 1986, concebido com o objetivo de proporcionar um espaço econômico comum. A criação deste espaço acelerou o processo de integração entre os dois países, que a partir de então buscaram a adesão dos demais.4

Em 1991, por meio do Tratado de Assunção, ficou positivada a intenção de criar um mercado comum entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O Mercosul nasce, assim, no interior do cenário mundial de acirramento da concorrência global, de regionalização por meio de megablocos e de liberalização dos mercados, como forma de inserir seus componentes de forma competitiva na economia mundial.

O Tratado de Assunção, base de sustentação do Mercosul, estabeleceu em seu art. 1º as implicações do Mercado Comum:

- livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países;

- estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados;

- coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais; e

- compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração.

Foi estabelecido um período de transição, compreendido entre a data da entrada em vigor do tratado em 31 de dezembro de 1994, durante o qual foi implantado um programa progressivo de redução de tarifas, a tarifa externa comum, embora com algumas exceções, e a adoção de acordos setoriais.

Esclarece-se, por oportuno, que apesar de a literatura específica delimitar claramente os modelos de integração, anteriormente identificados, na efetivação real e concreta dos processos essa distinção é menos nítida. Até o presente momento, o Mercosul, em alguns setores, sequer conseguiu alcançar o estágio da liberalização do comércio interno. Também não se configura o Mercosul como união aduaneira perfeita, em razão das muitas exceções à tarifa externa comum derivadas da existência de tarifas unilaterais aplicadas pelos Estados Partes sobre determinados produtos. Desta maneira, o processo de integração levado a efeito por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai encontra-se em um estágio que pode ser denominado União Aduaneira Page 5 imperfeita5. Para que seja alcançado o objetivo de...

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