Das múltiplas famílias

AutorPaulo Hermano Soares Ribeiro - Edson Pires da Fonseca
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, MG e da FADISA - MG. Tabelião de Notas. Advogado licenciado. - Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na FADISA e na FAVAG - MG
Páginas26-40

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A existência da humanidade é fruto da experiência familiar, verdade indiscutível das ciências biológicas, posto que é pela união do masculino e do feminino, sem adentrar em aspectos outros como sacralidade,

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longevidade ou efemeridade da relação, que os seres humanos são inseridos dentro do universo material da vida.

Nesse sentido, realçada a característica biológica básica, a família se mostra como dado da natureza, aproximando-se de outras espécies animais que também realizam acasalamento e reprodução. Contudo, dadas as escolhas que os seres humanos podem fazer, libertos do instinto apenas, a definição de família em contexto exclusivamente biológico é insuficiente.

A família é parentesco, mas não apenas. Além de reproduzir seres humanos, a família é ambiente para reprodução da cultura. A milenar experiência familiar da humanidade tem garantido a transmissão do conhecimento, da ciência, da ética, entendimento e das delicadezas da moral de uma geração para outra. Antes do advento da escrita principalmente, o papel da família na tradição oral da cultura e dos valores é dado histórico inegável.

O testemunho ou legado transmitido oralmente de geração para geração, legítima transmissão hereditária do conhecimento, se realiza no ambiente onde a família floresce e se desenvolve. Parafraseando o Cacique Seattle, para saber como pensavam os antigos seria necessário conhecer "quais as esperanças (o homem) transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã"9.

A família pode ser vislumbrada ainda em diversos espaços de afeto. Nesses, se forma para superar a solidão das pessoas, dividir esforços na busca de resultados, construir um lócus de felicidade e afirmação ou de satisfação de desejos e necessidades. São muitas faces, finalidades e transcendências que a família pode conter.

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A propósito,

Um Estado que se quer democrático, onde a dignidade da pessoa humana é erigida à condição de fundamento da república, não pode, sob pena de contrariar frontalmente o ordenamento constitucional, partir de uma perspectiva de exclusão de arranjos familiares, entenda-se, tecnicamente, entidades familiares não mencionadas expressamente pela CF, a que denominamos entidades familiares implicitamente constitucionalizadas.10Se é possível justificar a família com base em suas diversas funções, muitas também serão as possibilidades de famílias edificáveis na realidade social, ou mesmo no alinhamento entre cultura e natureza, observados o tempo, a necessidade e o olhar de cada sociedade.

2. 1 Indeterminação conceitual

O Direito tende a se mover na direção em que a sociedade caminha e se transforma. Sua dinâmica tem produzido ao longo do tempo, e em interregnos relativamente curtos, profundas alterações na compreensão e extensão do vocábulo família. Principalmente nas duas últimas décadas, reflexo da mudança de paradigma que produziu a Constituição Federal de 1988 (CRFB/88), tem-se construído doutrina e jurisprudência mais rentes com a realidade, o que reverberou na positivação de diversas normas revolucionárias ligadas à criança e ao adolescente, ao idoso, à união estável, ao casamento e sua dissolução etc. É natural que, apesar do sensível esforço de setores arejados da sociedade em atualizar constantemente esse ramo do direito, a legislação esteja sempre caminhando a muitos passos de distância do fato social.11

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A normatização das uniões homoafetivas e a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, por exemplo, ainda não foram positivadas pelo legislador. Motivada pelo vazio legislativo, e contra ele, a jurisprudência de nossos tribunais tem se levantado no sentido de evidenciar a isonomia entre união estável hetero e homoafetiva12, a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo13e, como corolário irrecusável, a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo.14É da natureza da norma o descompasso com a realidade, posto que a Lei se caracteriza como uma prescrição voltada para situações do passado, e não do presente imediato, muito menos do futuro. Em essência, a norma tende a ser conservadora e não se arriscar.

Na seara do direito de família, cujo instituto não é puramente jurídico, a apreensão da realidade pelo ordenamento é especialmente lenta. Não cabe ao legislador criar a família, nem o conteúdo dela. Como determinar por força da Lei que os cônjuges se amem ou os filhos respeitem seus pais? Somente a família pode criar a si mesma, e assim procedendo, se desenvolve e se transforma ao largo do legislador. Nesse sentido, sempre oportunas as palavras de João Baptista Villela:

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A família não é criação do Estado ou da Igreja. Tampouco é uma invenção do direito como são, por exemplo, o leasing, a sociedade por cotas de responsabilidade limitada, o mandado de segurança, o aviso prévio, a suspensão condicional da pena ou o devido processo legal. Estes institutos são produtos da cultura jurídica e foram criados para servir a sociedade. Mas a família antecede ao Estado, preexiste à Igreja e é contemporânea do direito. Pela ordem natural das coisas, não está no poder de disposição do Estado ou da Igreja desenhar, ao seu arbítrio, o perfil da família. O poder jurídico de um e de outra relativamente à família não pertence à ordem da atribuição. Pertence, ao contrário, à ordem do reconhecimento. Pode-se observar, de resto, que, ao longo da História, a autoridade intrínseca da família impõe-se aos poderes sacros e profanos com um silencioso noli me tangere!15A família não acontece por imposição da Lei, principalmente se esta estiver em desarmonia com os fatos sociais do presente histórico.16

O legislador brasileiro aprendeu essa lição a duras penas, quando experimentou fixar o conceito de família pela força da norma excessivamente rígida e intransigente. A concepção de família vigente durante a maior parte do século passado, atrelada exclusivamente ao matrimônio, por exemplo, ignorava a realidade. O empenho do legislador em favorecer o casamento formal, normatizando sua indissolubilidade, não impediu que as pessoas se separassem, e uma vez separadas, como não poderiam se casar novamente, emergiu da sociedade a tradição brasileira das famílias concubinárias, amasiadas, amigadas etc.

Sem opção na Lei, as pessoas se ajeitavam na realidade criativa, construindo normas não escritas que lhes permitissem um caminho para a felicidade.17O direito ignorava a realidade, e essa, vingava-se

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ignorando o direito.18O legislador aprendeu que, se família é afeto, a Lei não pode regular a família porque não tem jurisdição sobre os sentimentos.

A família é instituto interdisciplinar19, um universo de relações diferenciadas20cujo estudo interessa a um conjunto de ciências, e sua compreensão pelo olhar exclusivo do jurista jamais alcançará a completude. A família é multiforme, subversiva e plural, verdadeiro "caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da cultura, de geração para geração"21. Não se pode defini-la juridicamente sem incluir elementos da sociologia, psicologia, biologia, bioética, antropologia, filosofia, e outras ciências afins. É no encontro dialógico destes diversos saberes e diferentes pontos de vista, que a definição emerge.

A família é a primeira instituição do ser humano repleta de significados e projeções da pessoa adulta. Somos o que aprendemos ser dentro da família, cuja preponderância sobre todos os demais grupos sociais domina boa parte da vida do ser humano em construção, e exercerá fundamental influência em suas escolhas ao longo da vida. O poder de conformação que a família exerce sobre seus membros define a identidade social dela e deles.

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É preciso um arranjo familiar, mesmo que efêmero ou rudimentar, para que o ser humano possa nascer, e será imprescindível a manutenção de um ambiente onde a pessoa possa ser educada, desenvolver suas potencialidades e alcançar sua realização pessoal.

Segundo Lacan, a família surge inicialmente como um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação: "a geração, que dá os componentes do grupo" e "as condições do meio que o desenvolvimento dos jovens postula e que mantém o grupo na medida em que os adultos geradores asseguram sua função".22 "O aspecto cultural facilmente prepondera e domina a instância da natureza:

A espécie humana caracteriza-se por um desenvolvimento singular das relações sociais - desenvolvimento esse que é sustentado por capacidades excepcionais de comunicação mental -, e, correlativamente, por uma economia paradoxal dos instintos que aí se mostram essencialmente suscetíveis de conversão e de inversão, e não têm mais efeito isolável senão de maneira esporádica. Comportamentos adaptativos de variedade infinita são assim permitidos. Sua conservação e seu progresso, por dependerem de sua comunicação, são, antes de tudo, obra coletiva e constituem a cultura. Esta introduz uma nova dimensão na realidade social e na vida psíquica. Esta dimensão especifica a família humana como, de resto, todos os...

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