A impugnação das decisóes interlocutórias no direito lusitano

AutorClarissa Guedes
CargoMestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e Doutoranda em Direito Processual pela Universidade de São Paulo - USP.
Páginas183-222

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Introdução

"Sem o exame direto das fontes em que deita suas raízes, nenhum instituto recursal pode ser devidamente entendido em sua evolução". E para compreender sua trajetória no decorrer do tempo "é indispensável apurar-se quando o recurso surgiu, em que circunstâncias histórico-sociais, e qual o primeiro diploma legal que o consagrou, servindo de fundamento para a posterior construção dogmática de sua figura e de sua conceituação histórica". 117

Foi esse o espírito que guiou as pesquisas de Moacyr Lobo da Costa na cuidadosa tarefa de desvendar o momento do surgimento do agravo no direito lusitano118 e, especificamente, do agravoPage 184no auto do processo119, onde analisou diretamente as fontes históricas disponíveis, ao lado da doutrina acerca da matéria.

O tema já havia sido objeto, entre outros, da desvelada análise de Alfredo Buzaid120, cujas conclusões divergem, sob alguns aspectos, daquelas a que posteriormente chegou Lobo da Costa. Essas discrepâncias, porém, num ou noutro ponto, não têm o condão de desmerecer esse ou aquele estudo; as pesquisas empreendidas possuem, ao contrário, o mérito de, juntas e agregadas a algumas outras sobre a matéria121, traçar linhas gerais do desenvolvimento do agravo no direito lusitano, com a rara fidedignidade que somente se pode esperar de estudos históricos aprofundados, decorrentes de consulta direta às fontes mais remotas, muitas das quais de difícil acesso na atualidade.

Sem a pretensão de formular uma nova teoria sobre a origem do agravo no direito lusitano, o trabalho que se inicia objetiva sistematizar a evolução desta modalidade recursal como instrumento destinado à impugnação de decisões interlocutórias, cuja adoção no direito brasileiro suscitou e suscita, desde os primórdios da criação da justiça até os dias atuais, constante polêmica acerca de seu cabimento, procedimento e modalidades.

Espera-se que algum proveito possa ser extraído desta sistematização, menos pela originalidade e mais pela importância de se difundirem os estudos e ensinamentos históricos, que despertam o interesse pela mudança de perspectiva metodológica no estudo do direito processual.

I Antecedentes Históricos do Sistema Recursal Lusitano
1.1. Periodização da História do Direito Lusitano e Sistemas que influíram na Formação do Sistema Recursal das Ordenações

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Há, entre os processualistas que se dedicaram ao estudo da evolução histórica dos recursos cíveis com a devida seriedade, um certo consenso quanto ao fundamento da existência dos recursos que, além de psicológico, é eminentemente político122.

Em épocas mais remotas detecta-se que, a partir do momento em que surge uma organização estatal burocrática e hierarquizada, é de interesse do soberano exercer o controle sobre as decisões administrativas e jurisdicionais. E como, na prática, é inviável atribuir-lhe competência originária para todos os litígios, atribui-se-lhe competência para rever as decisões judiciais. As hipóteses em que cabível tal 'revisão', a princípio desprovidas de uma teoria ou estrutura que as pudesse sistematizar cientificamente, vão, pouco a pouco, tomando a forma de instrumentos processuais próximos àqueles que hoje se denominam recursos.

Importa-nos analisar os direitos que maior influência exerceram sobre a formação do direito processual civil lusitano: o direito romano, canônico e germânico. A sistematização da História do Direito Português fornece a exata percepção desta influência, sobretudo quando se tem em mente a sistematização adotada por Nuno J. Espinosa Gomes da Silva,123 que divide a evolução do direito lusitano em quatro etapas.

A primeira, com início na independência de Portugal e término ao alvorecer do Reinado de D. Afonso III, a que se denomina direito consuetudinário e foraleiro, foi marcada por um "relativo florescimento do direito consuetudinário local" e pela escassa intervenção do poder político central, "daí que, abandonada a criação do Direito aos múltiplos condicionalismos locais, se não possa falar, nesse período, de uma influência única"124. Foi também designada de período de sistema germânico Page 186ou germano-ibérico, muito embora a recente investigação histórica relute em refutar, em absoluto, a manifesta influência de elementos não germânicos.125

À segunda fase convencionou-se chamar período de influência do direito comum: vai desde o começo do reinado de D. Afonso III, por volta da metade do século XIII, até meados do século XVIII (reinado de D. José). Como designa o nome, trata-se de período de sensível recepção do direito comum126, quando, após cerca de cinco séculos de aplicação do direito romano da compilação bizantina, Portugal passa a aplicar o direito romano justinianeu: o rei, então, "legislará para esclarecer, completar, ou, até, afastar as soluções romanas, mas o direito romano será sempre ponto de referência: e, o direito canônico, em coordenação com o romano, igualmente se aplicará"127. Neste segundo período, distinguem-se duas épocas:

Uma primeira (até ao aparecimento das Ordenações Afonsinas – meados do século XV), época de legislação avulsa, em que a lei geral do monarca, do mesmo passo que vai combatendo as formações consuetudinárias, é veículo de romanização do direito protuguês – época em que se poderá designar de época de recepção do direito comum. A Segunda época, que se caracteriza pela codificação dessa legislação avulsa e por uma sistematização das várias fontes, pode denominar-se época das Ordenações128.

É exatamente este o período de estruturação do processo lusitano, porquanto, até então, o ambiente social era permeado pelo "particularismo dos regimes jurídicos empregados"129, e o direito estampava-se "nos foros da nobreza, nas prerrogativas do clero, nos forais dos concelhos,Page 187nos costumes dos senhorios, nos estatutos das universidades, nos direitos dos mercadores e das demais profissões e atividades"130.

Nesse panorama, a recepção do Direito Romano deflagrada em fins do século XII pode ser atribuída, em princípio, à influência exercida pela Escola dos Glosadores, de Bolonha. No Reinado de D. Diniz, tem-se a fundação da Universidade Portuguesa em Lisboa, no século XIII, posteriormente transferida para Coimbra,131 como fator contributivo ao renascimento do Direito Justinianeu.

A renovação do Direito Canônico, por seu turno, deve-se à elaboração de grandes compilações (o Decreto, de Graciniano, as Decretais de Gregório IX, o "Sexto", de Bonifácio VIII, as "Clementinas", de Clemente V, e as "Extravagantes", de D. João XXII), que posteriormente viriam a compor o Corpus Iuris Canonici.

Para Almeida Costa, não é exato cogitar de um "renascimento" canonístico, pois não ocorreu quebra de continuidade na evolução jurídico canônica que autorizasse tal entendimento. O que houve foi, tão-somente, "um impulso de transformação normativa e dogmática".132

Ainda sob o Reinado de D. Diniz, a abundante atividade legislativa, sobretudo acerca do direito processual, revela a intenção patente de se "consolidar a justiça pública", setor em que se evidencia freqüente preocupação com as delongas do processo, consoante enuncia Luiz Carlos Azevedo:

Pretendendo estabelecer uma verdadeira 'ordem do juízo', afastou os abusos, as malícias, delongas que se faziam no curso das demandas (Lei de 15.09.1313), determinou aos alcaides, juízes, alvazís, comendadores e outros julgadores que se aplicasse convenientemente a justiça (Lei de 04.06.1263), dispôs sobre inúmeros institutos processuais, tais como a citação, revelia (Lei de 1.01.1294), chamamento à autoria, apelação tanto das definitivas quanto interlocutórias (Lei de 27.08.1316), apelação (Lei de 19.03.1317), suplicação (Lei de 07.07.1302), ação rescisória fundadaPage 188em falsas provas (Lei de 24.04.1307), execução (Lei de 24.08.1282), concurso de credores, princípio do contraditório, autoridade da coisa julgada etc.)133.

Além destas normas, os influxos romanos se fizeram sentir pela tradução para o vernáculo das obras 'Flores de Las Leyes', de Jácome de Ruiz e 'Lei das Siete Partidas', esta última editada em Castela por Afonso X. Ambas as iniciativas parecem ter ocorrido no Reinado de D. Diniz134.

Cuidava-se...

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