Das aquisições hostis na pratica norte-americana e a perspectiva brasileira

AutorGustavo Santamaria Carvalhal Ribas
Páginas121-129

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Em obra célebre publicada no segundo quartel do século XX, Adolf Berle e Gardiner Means1 expuseram a existência de um "descolamento" entre a propriedade de ações de emissão de determinada companhia e o poder de determinar a direção de suas atividades sociais, bem como de orientar o seu funcionamento - um dos elementos escolhidos pelo art. 116 da Lei n. 6.404/762 para qualificar o acionista controlador. Segundo os citados autores, o capitalismo norte-americano havia atingido um ponto no qual os títulos e valores mobiliários emitidos por algumas companhias abertas se encontravam de tal forma dispersos no mercado de capitais que os maiores acionistas das mesmas deteriam porcentagens ínfimas de ações quando consideradas em sua totalidade, praticamente impossibilitando o exercício de um controle pronto e efetivo, mesmo, por exemplo, que por parte de um grupo de acionistas unidos mediante um acordo de acionistas. Exemplo gritante desta situação seria a Pennsylvania Railroad Co. Em 31 de dezembro de 1929 os vinte maiores acionistas desta companhia detinham, juntos, 2,70% (dois vírgula setenta por cento) do capital social da mesma, sendo, ainda, seu maior acionista possuidor de meros 0,34% (zero vírgula trinta e quatro por cento) do total de ações emitidas, conforme tabela elaborada pelos autores.3

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Este panorama teria dado ensejo ao exercício do controle por parte dos órgãos administrativos da companhia, solapando o clássico entendimento segundo o qual o poder de uso adviria do direito de propriedade. F. K. Comparato,4 comentando sobre a problemática do poder de controle empresarial, afirma configurar este a modalidade dé controle administrativo ou gerencial, não sendo fundada na propriedade de ações, mas nos cargos diretoriais. Chega o autor, inclusive a afirmar que, nestes casos: "A perpetuação dos administradores no poder é obtida, sobretudo, com a utilização de complexos mecanismos de representação de acionistas em assembleia (proxy machinery), explorando-se ao má-ximo o absenteísmo do corpo acionário"5 (grifos do autor).

Os editores da revista inglesa The Economist, Micklethwait e Woolridge, em seus recentes estudos sobre as companhias, notaram também que, ao final do século XX, os acionistas haviam fracassado na tentativa de controlar o poder dos administradores conforme almejavam desde o final do século XIX.6 Assim, a partir daí, o que se veria na prática seria a instituição de uma espécie de ditadura, sujeitando os acionistas - verdadeiros proprietários da companhia - aos interesses dos administradores das mesmas, ironicamente eleitos pelos primeiros.

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Nos Estados Unidos da América, estas circunstâncias possibilitaram a elaboração de teorias hoje amplamente aceitas pela doutrina e também sobre as quais a jurisprudência é quase pacífica. A regra do julgamento empresarial - business judge-ment rule - institucionalizou o poder dos administradores das companhias, estabelecendo explicitamente que, com relação a determinadas matérias, não é possível qualquer questionamento, mesmo judicial. Segundo ela, uma decisão tomada pelos administradores de uma companhia com relação às suas atividades empresariais quotidianas e baseada em informações corre-tas e suficientes, e desde que tomadas as consultas devidas, deve ser integralmente respeitada pelo Poder Judiciário. Assim, os acionistas se encontrariam impossibilitados de questionar a validade de determinadas decisões tomadas pelos administradores, especialmente no tocante à oportunidade e à conveniência de acordo com as quais foram elas tomadas, pois estas decisões haveriam sido tomadas sob certas circunstâncias empresariais e num momento no qual ela pareceu, para aqueles administradores, a mais correta, não podendo a mesma ser anulada, o que levaria a uma situação de enorme insegurança jurídica e, consequen-temente, de menor fluidez e crescimento económico. Modernamente, a teoria norte-americana da empresa7 entende haver nestas duas esferas separadas de controle, uma composta por matérias claramente de competência dos acionistas e outra por matérias claramente de competência dos administradores, como dois "espaços sagrados", os quais não poderiam ser invadidos um pelo outro. A Suprema Corte de Delaware, no recente caso MM Companies, Inc. v. Liquid Audio, Inc.,8 explica que: "os princípios mais fundamentais de governança corporativa são uma função da alocação de poder no âmbito de uma corporação entre seus acionistas e seu conselho de administração. O poder dos acionistas é o direito de votar em matérias específicas, em particular, numa eleição de administradores".9

Como exemplo, podemos citar que o poder de eleger os administradores ou de alterar o estatuto social se encontra no "espaço sagrado" dos acionistas, não podendo os mesmos, por exemplo, contestar uma decisão do conselho de administração sobre a melhor localidade para construção de determinada planta industrial, e, por outro lado, o poder de tomar decisões empresariais quotidianas se encontra no "espaço sagrado" dos administradores que, também, não podem se negar a admitir os membros que os acionistas elegeram para integrar seu conselho. Entretanto, o que os autores discutem é a alocação de alguns temas mais complexos, como a alienação do controle da companhia, a qual se encontra na intersecção destes espaços. É bem verdade que esta é tanto uma decisão empresarial quanto um assunto de extrema relevância para os acionistas, mas a jurisprudência norte-americana varia ao atribuir a decisão aos administradores ou aos acionistas.

O panorama descrito até aqui, especialmente no que toca à imposição de uma "ditadura dos administradores", levou os juristas norte-americanos a desenvolverem o método da aquisição hostil, conhecida alhures como hostile takeover. Como asseverou, à época, Goyos Jr., "É crescente a popularidade internacional da utilização da

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oferta pública como meio de aquisição de controle societário de companhia aberta".10

Tendo-se iniciado em 1974, esta prática tornou-se cada vez mais popular nos Estados Unidos da América, fundando-se na ideia de que altas taxas de inflação e baixas taxas de crescimento económico produzem uma queda nos preços das ações, resultando em boas oportunidades de aquisições. Este ciclo económico pode ser sintetizado num curto aforismo que representa muito bem o pensamento da época; "é mais barato comprar do que construir".

A história conta que o mecanismo foi engendrado pelo engenheiro financeiro Robert Greenhill, então um jovem sócio do banco de investimentos norte-americano Morgan Stanley, e pelo advogado Joseph Flom, também então um jovem sócio do escritório norte-americano Skadden, Arps, Slate, Meagher and Flom, que, na tarde de 18 de julho daquele ano, representando a International Nickel Company, não se contentaram em ter sua proposta de aquisição da ESB, Inc. negada, procedendo com a realização de uma oferta pública voluntária de aquisição de controle anunciada no final da tarde daquele mesmo dia. O presidente da ESB, Inc. ainda não havia compreendido muito bem o que eles haviam feito. Até então, uma resposta negativa por parte da administração da companhia constituía ponto final e intransponível de uma proposta, fosse ela de aquisição, fusão ou mesmo de um simples acordo comercial. Entretanto, o evento mudaria para sempre os modos de condução de negociações e de tratamento dos acionistas.

Como bem delineado por F. K. Com-parato,11 a aquisição hostil se insere como uma alternativa à companhia que deseja incorporar outra, cuja maioria...

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