Dano Praticado por Atleta Profissional

AutorJosé Affonso Dallegrave Neto
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná
Páginas175-186

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Ver nota 1

A responsabilidade dos patrões ou comitentes pelos atos ilícitos de seus empregados ou prepostos constitui a parte mais importante e mais ampla no problema da responsabilidade pelo fato de outrem.

(Alvino Lima)2

1. Contrato especial de trabalho desportivo

Registre-se, desde logo, a baliza feita pelo art. 3º da Lei n. 9.615/1998, que, ao complementar as diretivas da Constituição Federal, fez questão de enumerar "as mais diversas formas de manifestação do esporte, educacional, de participação e alto rendimento3", além de distinguir o desporto de rendimento profissional e o não profissional. Oportuna a transcrição do parágrafo único do art. 3º da Lei Pelé :

Art. 3º O desporto de rendimento pode ser organizado e praticado:

I - de modo profissional, caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva;

II - de modo não profissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio4.

Com efeito, somente o desporto de rendimento, organizado e praticado de modo profissional, com remuneração pactuada e com a observância dos requisitos do art. 3º da CLT (pessoalidade, periodicidade e subordinação) pressupõe a celebração de um contrato de trabalho formalizado diretamente entre o atleta e a entidade de prática desportiva, sendo vedada a sua realização por meio de terceiros ou agentes desportivos (art. 27-C e art. 29, § 12, da Lei n. 9.615/1998).

Nos demais casos de prática de desporto de rendimento, identificado pela ausência de vínculo empregatício do atleta, pela maior liberdade de prática e menor compromisso com o clube, não haverá contrato de trabalho, mas apenas um termo de ajuste com previsão de incentivos materiais, de patrocínio ou alguma outra obrigação recíproca diversa da trabalhista.

Antes da Lei n. 12.395/2011, esta avença entre o atleta e a entidade de prática desportiva (o clube) era chamada de "contrato de trabalho profissional". Doravante, é denominada "contrato especial de trabalho desportivo" (CETD), consoante dispõe o art. 28 da Lei n. 9.615/1998 em redação dada pela Lei n. 12.395/2011.

Por ser do tipo especial, o contrato de trabalho desportivo deverá ser celebrado na forma escrita e com prazo nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos (art. 30, Lei n. 9615/1998). Nos termos do § 5º, do art. 28, da aludida Lei, o vínculo desportivo do atleta com o clube tem natureza acessória ao vínculo de emprego e se forma a partir do respectivo registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto (as federações e confederações de futebol).

Diante do que foi dito até aqui, cabe distinguir três situações jurídicas.

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A primeira é a do vínculo de emprego que se consolida com a celebração escrita do contrato especial de trabalho desportivo firmado entre o clube e o atleta-empregado, sendo que este deverá ter no mínimo 16 anos de idade, além de observar os requisitos do art. 3º da CLT e remuneração pactuada entre as partes.

A segunda, acessória à primeira, é o vínculo desportivo entre o atleta e o clube, o qual se constitui com o registro do contrato especial de trabalho desportivo junto à federação ou confederação de futebol, dependendo do caso.

Finalmente, a terceira situação diz respeito ao contrato de formação entre o clube e o atleta, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, que passa a receber bolsa de aprendizagem, pactuada mediante contrato formal, sem que gere vínculo empregatício entre as partes. Aludido contrato de formação também deverá ser registrado na entidade de administração desportiva (federação ou confederação)5.

A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo também não poderá ser superior a 5 (cinco) anos, bem como (terá) o direito de preferência para a primeira renovação deste contrato, cujo prazo não poderá ser superior a 3 (três) anos, salvo se para equiparação de proposta de terceiro. Exegese do art. 29 e seu § 4º e §§ 7º a 13, da Lei n. 9.615/1998.

2. A relação de hiper-subordinação jurídica entre o atleta e o clube

Oportuno transcrever os arts. 34 e 35, da Lei n. 9.615/1998, acerca dos deveres das partes, atleta e clube, em relação ao contrato especial de trabalho desportivo:

Art. 34. São deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial:

I - registrar o contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional na entidade de administração da respectiva modalidade desportiva;

II - proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais;

III - submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática desportiva.

Art. 35. São deveres do atleta profissional, em especial:

I - participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas;

II - preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;

III - exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.

Consoante se infere da leitura do art. 35, o atleta profissional mantém com o empregador uma relação de hiper-subordinação, na medida em que se submete às estritas diretrizes do clube, dentro e fora do campo, em jogos, treinos e sessões preparatórias, assumindo o compromisso não só de treinar e jogar, mas de se dedicar ao máximo possível. Isso sem falar que, quando as vitórias e as boas performances não surgem nas competições, as cobranças tornam-se inevitáveis e vêm de todos os lados: treinador, torcida e dirigentes.

Dentro da taxionomia jurídica, jogar futebol é apenas uma obrigação de meio; contudo, na prática, é uma verdadeira obrigação de resultado. Não bastasse isso, o jogador de futebol profissional assume o dever de se preservar em relação às suas condições psicofíssicas e técnicas, além de exercitar a atividade desportiva em rigoroso cumprimento das regras da modalidade, da disciplina e da ética desportivas. Some-se a isso a possibilidade peculiar do atleta profissional ceder, para exploração econômica do clube ou de seus patrocinadores, mediante ajuste contratual de natureza civil, o seu direito de uso de imagem. A contraprestação avençada não caracteriza salário, exceto nos casos de fraude ao art. 87-A, da Lei n. 9.615/1998.

USO DE IMAGEM. CONTRATO DE CESSÃO. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. FRAUDE. EFEITOS. "Por constituírem direitos de natureza diversa, o salário e o direito de uso de imagem do atleta profissional possuem finalidades distintas: O primeiro remunera a força de trabalho do jogador em prol do clube desportivo, ao passo que o segundo se traduz em direito personalíssimo

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negociado livremente pelo atleta com terceiros, tendo por objetivo vincular à sua imagem ao produto ou marca que pretende promover. No entanto, quando o patrocinador e o clube desportivo entram em conluio para fraudar direitos trabalhistas e sonegar impostos, os valores pagos a título de "direito de uso de imagem" passam a integrar a remuneração do trabalhador para todos os efeitos legais. A ilicitude do contrato de natureza civil pode ser comprovada ante a interdependência com o contrato de trabalho, bem como pela ausência de provas quanto ao uso da imagem do jogador em campanhas publicitárias, sendo irrelevante o fato de o pagamento advir de terceiro ou ser depositado em conta de pessoa jurídica que o empregador compeliu o jogador a constituir para fraudar a Lei, prejudicando o próprio trabalhador e terceiros." (TRT 1a R.; RO 0076700-19.2007.5.01.0034; rel. Juiz José Geraldo da Fonseca; DORJ 16.9.2010)

Como se vê, o vínculo do atleta com o clube é integral: corpo, performance e imagem. Isso tudo concorre para uma relação jurídica de hipersubordinação; quase que uma relação de posse e propriedade do clube em relação ao atleta.

Com efeito, nesta seara contratual os limites do poder de direção do clube (o jus variandi do empregador) devem ser vistos e aplicados com maior rigor, sob pena de legitimarmos verdadeiros abusos de poder. Oportuna, a propósito, a transcrição do art. 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Não por acaso que o legislador fez questão de fincar alguns limites expressos no art. 27-C da Lei n. 9.615/1998, os quais destacamos:

Art. 27-C: São nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo, pessoa física ou jurídica, bem como as cláusulas contratuais ou de instrumentos procuratórios que:

III - restrinjam a liberdade de trabalho desportivo;

IV - estabeleçam obrigações consideradas abusivas ou desproporcionais;

V - infrinjam os princípios da boa-fé objetiva ou do fim social do contrato;"

O fim do chamado "passe"6 ocorrido com a Lei Pelé que declarou que o vínculo...

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