Da Uniformização da Jurisprudência Trabalhista

AutorMauro Schiavi
Ocupação do AutorJuiz Titular da 19a Vara do Trabalho de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professor Convidado dos Cursos de Pós-Graduação da PUC/SP (Cogeae)
Páginas219-259

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1. Da jurisprudência

Em épocas marcadas por grandes codificações, seguindo o sistema romano--germânico de legislação escrita e rígida, o juiz, praticamente, não podia interpretar a lei, somente podendo aplicá-la, subsumindo os fatos ao prévio catálogo de lei. O juiz era apenas a voz e a boca da lei (bouche de la loi). Se tornou clássica a frase in claris cessat interpretatio do Código Civil francês.

Na visão de Montesquieu, os juízes eram seres inanimados, que não podiam moderar nem a sua força (a Lei) nem o seu rigor. O juiz nada criaria, apenas aplicaria o direito (já previamente elaborado pelo legislador) ao caso concreto. O catálogo de todas as soluções possíveis já preexistiria ao caso litigioso. Ao juiz nada mais se pediria do que confrontar o fato com tal catálogo, até localizar a regra legal que resolveria o problema. Sua atividade mental seria apenas silogística167.

Atualmente, o sistema constitucional brasileiro, fruto do Estado Social, reconhece a liberdade de convicção do magistrado como sendo não só uma garantia da cidadania, mas, também, um pilar de sustentação do regime democrático de tripartição de poderes.

A doutrina tem destacado o importante papel do Judiciário Trabalhista na con cretização e efetivação dos direitos fundamentais do trabalhador, não sendo este apenas a chamada "boca da lei", mas livre para realizar interpretações construtivas e evolutivas do direito, a partir dos princípios constitucionais, com a finalidade de encontrar equilíbrio entre a livre-iniciativa e a dignidade da pessoa humana do trabalhador.

Não há consenso na doutrina de ser, efetivamente, a jurisprudência fonte do Direito Processual do Trabalho, pois o Brasil tem a tradição romano-germânica que prioriza o Direito positivado na lei. Entretanto, no Processo do Trabalho, a própria

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CLT reconhece a jurisprudência como fonte tanto do Direito do Trabalho quanto do Direito Processual do Trabalho (art. 8º).

A jurisprudência compõe o conjunto de decisões dos Tribunais, englobando os Tribunais Superiores, os de 2º grau de jurisdição e também os órgãos de 1º grau de jurisdição (Varas do Trabalho). Quando há reiteradas decisões num mesmo sentido, diz-se que há jurisprudência predominante sobre determinada matéria.

Como bem adverte Tércio Sampaio Ferraz Júnior168: "Se é verdade que o respeito à lei e a proibição da decisão contra legem constituem regras estruturais fortes do sistema, não podemos desconhecer, de um lado, a formação de interpretações uniformes e constantes que, se não inovam a lei, dão-lhe um sentido geral de orientação; é a chamada jurisprudência pacífica dos tribunais, que não obriga, mas de fato acaba por prevalecer".

A jurisprudência uniforme dos Tribunais dá ensejo à edição de Súmulas, que constituem o resumo da interpretação pacífica de determinado Tribunal sobre uma matéria jurídica. São muitas as Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho, disciplinando matéria processual, principalmente sobre matérias de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao Processo do Trabalho.

Como bem adverte José Miguel Garcia Medina169:

"A lei e a súmula não se encontram num mesmo plano. Na verdade, a súmula deve se subordinar à lei. O que ocorre é que a norma jurídica, geral e abstrata, pode dar ensejo ao surgimento de duas ou mais interpretações diversas, sobre um mesmo assunto (...). A súmula, assim, desempenha função importantíssima, pois registra qual interpretação da norma seria a correta, que, uma vez revelada, irá instruir julgamentos posteriores sobre o mesmo tema. Não admira que, muitas vezes, não se menciona, na fundamentação das decisões judiciais, qualquer dispositivo de lei. As decisões judiciais devem ser fundamentadas no sistema jurídico e, porque a súmula revela interpretação jurisprudencial tida por correta, apenas nessa medida deverá ser invocada".

A EC n. 45/04 criou a Súmula Vinculante, que pode ser editada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante procedimento disciplinado por lei (Lei n. 11.417/06).

Nesse sentido, dispõe o art. 103-A da CF:

"O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento,

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na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e deter-minará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso".

Em havendo Súmula Vinculante do Supremo Tribunal em matéria da competência da Justiça do Trabalho, os órgãos da Justiça do Trabalho (Juízes do Trabalho, TRTs e TST) terão de observá-la. Portanto, as Súmulas Vinculantes em matéria processual são fontes do Direito Processual do Trabalho.

2. A questão do precedente judicial e o Código de Processo Civil

No direito brasileiro, a existência de controle difuso de constitucionalidade, o emprego crescente de textos redigidos a partir de técnica legislativa aberta e, sobretudo, uma nova compreensão a respeito do significado da interpretação jurídica colaboraram significativamente para essa interpenetração. Desde o momento em que se percebeu que o texto não se confunde com a norma e que a norma não é o objeto, mas o resultado da interpretação, chegou-se à conclusão de que ou a inter-pretação dada ao direito pelo Supremo Tribunal e pelo Superior Tribunal de Justiça era encarada como algo dotado de normatividade, ou então, o princípio da igualdade se esfumaça em uma abstração irritante em um sistema indiferente à imensa maioria de casos concretos idênticos ou semelhantes cotidianamente julgados de maneira diferente170.

Indiscutivelmente, existe uma tendência contemporânea de aproximação entre os sistemas da common law e civil law, considerando-se a força criativa do direito pelos Tribunais Superiores, que são as Cortes encarregadas de dar a palavra final sobre a interpretação da lei, e aplicar o resultado da interpretação para casos idênticos, como forma de racionalizar a atividade dos Tribunais, e impulsionar a aplicação isonômica da norma para todos que estão na mesma situação jurídica.

O Código de Processo Civil utiliza a expressão precedentes quando dispõe sobre a jurisprudência dos Tribunais. Nesse sentido, dispõe o art. 926 do CPC, in verbis:

Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.

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O precedente não é o resumo do julgamento ou a conclusão da decisão, mas a tese extraída do julgamento, que em razão de suas peculiaridades, importância e generalidade, possa ser aplicada em outros casos análogos. É a chamada razão determinante da decisão ou ratio decidendi. Por isso, todo precedente deve ser decorrente de uma decisão judicial.

Somente a interpretação jurídica que se extrai do enquadramento dos fatos ao regramento legal, pode ser objeto do precedente judicial, uma vez que as controvérsias fáticas de cada demanda são únicas e desafiam um único julgamento, cuja tese não pode ser transportada para outras demandas.

Como sustenta Hermes Zaneti Jr.171:

"Precedentes judiciais não se confundem com direito jurisprudencial entendido como repetição de decisões reiteradas, por mais que este direito possa ser considerado influente ou persuasivo de fato. Os precedentes judiciais, como entendemos neste trabalho, consistem no resultado da densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas. No momento da aplicação, deste caso-procedente, analisado no caso-atual, se extrai a ratio decidendi ou holding como o core do procedente. Trata-se, portanto, da solução jurídica explicitada argumentativamente pelo intérprete a partir da unidade fático-jurídica do caso-precedente (material facts e a solução jurídica dada para o caso-atual). Por esta razão, não se confudem com a jurisprudência, pois não se traduzem em tendências do tribunal, mas na própria decisão (ou decisões) do tribunal com respeito à matéria".

Na mesma direção, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero172:

"Os precedentes não são equivalentes às decisões judiciais. Eles são razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir das decisões judiciais. O precedente é formado a partir da decisão judicial. E porque tem como matéria-prima a decisão...

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