O problema da transdisciplinaridade: ciência e filosofia hoje

AutorEduardo Luft
CargoDoutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com um ano de estudos na Universidade de Heidelberg Alemanha
Páginas66-83
1807-1384.2014v11n1p66
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Adaptada.
O PROBLEMA DA TRANSDISCIPLINARIDADE: CIÊNCIA E FILOSOFIA HOJE
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Eduardo Luft2
Resumo:
O artigo parte da pergunta: por que a transdisciplinaridade emerge, para nós, como
um problema? Veremos como o problema da transdisciplinaridade está vinculado à
crise da filosofia que é, na verdade, uma crise da própria ideia de razão e, com isso,
um impasse que arrasta consigo também o saber científico em seu todo. Ficará claro
que um conceito muito específico de razão, impregnado da visão de mundo
determinista da modernidade, está no centro desta crise. Inovações teóricas em
ciência e em filosofia iluminam uma possível alternativa: um novo conceito de razão,
sem o viés para a ordem, emerge da crítica interna ao projeto de sistema hegeliano
e de sua articulação com a teoria de sistemas adaptativos complexos e a teoria de
redes, dando origem a uma proposta contemporânea de ontologia de redes.
Palavras-chave: Filosofia. Ciência. Transdisciplinaridade. Dialética. Ontologia de
redes.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Gostaria de começar com a questão que parece preceder todas as outras no
contexto do presente simpósio: por que a interdisciplinaridade ou, mais
enfaticamente, a transdisciplinaridade emerge como uma questão decisiva para o
pensamento contemporâneo? Por que a transdisciplinaridade brota, para nós, como
um problema? Problema, como dizia Ortega y Gasset (1961, p. 108), em sua
linguagem ao mesmo tempo simples e cheia de significado, “é a consciência de um
ser e não ser, de uma contradição”. A pergunta, então, é: que contradição estaria na
origem de nosso interesse renovado pelo tema da transdisciplinaridade?
Uma resposta inicial apontaria para a crescente dispersão do saber em geral,
1 Este texto foi apresentado oralmente no Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no
Ensino, na Pesquisa e na Extensão Região Sul, em Outubro 2013, Florianópolis, SC, Brasil.
2 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com um ano de
estudos na Universidade de Heidelberg Alemanha. Pós-doutorado pela Universidade de Frankfurt,
Alemanha. Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS, Brasil. E-mail: eduardo.luft@pucrs.br
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R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.1, p. 66-83, Jan./Jun. 2014
ancorada, sobretudo, mas não unicamente,
3 na expansão e na especialização
vertiginosas do conhecimento científico.4 A contradição emergiria, primeiro, porque
ao mesmo tempo em que produzimos essa notória pulverização do saber, tomamos
como irrecusável a exigência de sua unidade. Não apenas porque nosso
conhecimento trata do mundo, e partilhamos da convicção, algo difusa, de que o
mundo não é apenas mundo, mas cosmos, realidade ao menos minimamente
organizada, mas sobretudo porque inere ao próprio ato de pensar a busca por
unidade. Na definição de Kant (1993, §22), pensar é “unir representações em uma
consciência”. Relendo a definição kantiana após a virada linguística em filosofia
(OLIVEIRA, 1996), poderíamos dizer: pensando, enlaçamos um conjunto
aparentemente disperso de dados, porque ainda não adequadamente
conceitualizados, em uma mesma rede semântica. Sendo assim, a própria atividade
de pensar, enquanto constitutivamente orientada pela busca por unidade, emergiria
em contradição frontal com aquele movimento de dispersão dos saberes. O próprio
pensamento visaria a unidade abrangente de todos os saberes, ao mesmo tempo
bloqueada pela tendência dispersiva da ciência contemporânea.
Mas, essa não parece ser uma resposta satisfatória. Em primeiro lugar, o
pensamento não visa propriamente à unidade, mas à coerência. Coerência vem do
latim ‘cohaerentia’, ‘relação’, quer dizer, a unidade de uma multiplicidade bem como
a multiplicidade em unidade. Não há privilégio nesse jogo duplo, que vai da unidade
à multiplicidade ou vice-versa, não havendo, portanto, nada de estranho no fato de
que, em certas fases da história da ciência, às vezes longas, o pensamento explore
o movimento que vai, predominantemente, da síntese à análise, da uniformização à
diversificação dos saberes, temas e métodos de pesquisa; a ciência pode ter se
tornado mais complexa, mas o caráter biface da busca por coerência é constitutivo
do próprio ato de pensar e, pensando bem, nada de novo. Análise e síntese não são
opostos contraditórios, mas contrários (CIRNE-LIMA, 1996, p. 124-5), momentos
complementares da atividade de pensamento.
Por outro lado, mesmo compreendendo o caráter complementar desses dois
movimentos antagônicos da busca por coerência, restaria a pergunta se a
3 Outra possível explicação é a predominância do espírito cético em nossa época, sendo a
característica central do ceticismo a ênfase no Múltiplo e em suas notas definidoras, diferença,
variação e subdeterminação (cf. LUFT, 2010, p. 103).
4 “A transdisciplinaridade supera as áreas estreitas dos temas e disciplinas que se constituíram
historicamente, mas que perderam sua memória histórica e suas capacidades de resolver problemas
devido a uma especialização excessiva” (MITTELSTRASS, 2011, p. 332).

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