Da segurança jurídica da propriedade privada

AutorMelina Lemos Vilela
Páginas211-263

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“O elo mais forte e mais fecundo é o que tem por base a confiança recíproca – entre o homem e a mulher, entre pais e filhos, entre um chefe e os homens que ele dirige, entre cidadãos de uma mesma pátria, entre doente e médico, entre alunos e professor, entre prestamista e prestatário, entre indivíduo empreendedor e comanditários – ao passo que inversamente, a desconfiança esteriliza.”

(Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança)

Diversos Estados-Membros fizeram concessões e alienações de terras devolutas dentro da faixa de fronteira sem o assentimento prévio do Conselho de Segurança Nacional, descumprindo, desde 1934, os preceitos da Constituição Federal, o que contribuiu para a intensa migração de colonos, bem como para o surgimento de áreas de produção agrícola e de pecuária.

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Como mencionado no capítulo anterior, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e o MPF têm ajuizado diversas ações de Nulidade de Títulos de Aquisições de Terras do Estado, em função das quais são feitas vistorias das propriedades com o fim de ingressar com ação de desapropriação por interesse social de imóveis rurais matriculados no Cartório de Registro de Imóveis há mais de 40 anos.

A ação de nulidade busca eliminar o processo de indenização das terras, o que acarreta na insegurança jurídica, gerando diversos conflitos sociais nas regiões onde se dá a ação, causando prejuízos para as famílias que adquiriram as propriedades dos EstadosMembros261.

Neste capítulo serão apresentados os princípios constitucionais que embasam essa matéria, de forma a demonstrar que essas terras alienadas ou cedidas pelos Estados-Membros não podem ter seus títulos anulados, visto que deve-se preservar a segurança jurídica.

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5.1. Do princípio da segurança jurídica

Esse princípio jurídico constitucional, também conhecido como Princípio da Certeza Jurídica ou Princípio da Proteção da Confiança, traz a certeza de um valor do direito positivo, e a falta dessa certeza de justiça pode acarretar em arbítrio.262A Segurança Jurídica tem suas raízes no pensamento político liberal dos séculos XVII e XVIII, que através de pensadores tais como Hobbes, Locke, Hume e outros, que formularam diretrizes e pressupostos para que pudesse haver uma estrita correlação entre a posse, propriedade, Estado e Justiça. Esses ideais passaram a integrar a Constituição

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Francesa de 1793263 e, com base no entendimento de David Hume, caracterizou-se como condição de lei fundamental, como uma premissa estruturada a “estabilidade da posse, de sua transferência por consentimento e de cumprimento de promessas”.264David Hume afirma que há na sociedade uma busca pela estabilidade de seus bens externos que puderam adquirir por seu trabalho ou boa sorte265 e Thomas Hobbes declara que a incerteza é que

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gera insegurança, pois ausente o Estado e com isso acarreta na “guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas incerteza”.266No Brasil, o princípio da Segurança Jurídica está previsto no preâmbulo da Carta Magna267 de 1988 e em seu artigo 5º, caput, que trata dos direitos fundamentais, caracterizando-se assim pelo alto valor do sistema jurídico em nossa sociedade, de forma a viabilizar um equilíbrio social.

Sylvia Calmes, ao examinar a jurisprudência da união europeia, afirma que a segurança jurídica foi

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muito invocada a partir de 1961 e que a Corte cita frequentemente essa regra imperiosa da segurança jurídica consolidando-a nas décadas seguintes. A autora afirma também que o princípio geral da segurança jurídica é uma regra de direito a ser respeitada, pois é um elemento indispensável ao bom funcionamento das instituições.268Esse princípio se justifica pela necessidade de se oferecer estabilidade às instituições, pois é comum haver mudança de interpretação de normas legais, com a consequente mudança da legislação, o que afeta situações já consolidadas oriundas de legislação ou orientação anterior. Como a alteração de legislação é inevitável, deve-se buscar a segurança jurídica, pois sua falta acarreta na insegurança de

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que poderá o interessado ver a sua situação contestada.269Gisela G. Ramos afirma que uma das características do princípio da segurança jurídica é a preservação da própria ordem jurídica, e que “se justifica na necessidade de criação e preservação de instrumentos legais que deem o necessário suporte àqueles direitos e garantias, como também na tutela do espaço institucional criado para desenvolvê-los, e suprir as exigências advindas do vasto universo das relações sociais”.270Hely Lopes Meirelles ensina que: “o princípio da segurança jurídica é considerado como uma das vigas mestras da ordem jurídica, sendo, segundo J. J. Gomes Canotilho, um dos subprincípios básicos do próprio conceito de Estado de Direito. Para Almiro do Couto Silva, um dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o crescimento da importância do princípio da segurança jurídica, entendido como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança. A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade. A segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma

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das vigas mestras do Estado de Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos sub-princípios integradores do próprio conceito de Estado de Direito”.271Piazzon afirma que, em um primeiro sentido, a segurança jurídica é definida como um “ideal para o qual a lei deve procurar estabelecer normas consistentes, relativamente estáveis e acessíveis para que as pessoas façam previsões” e continua a afirmar que a segurança jurídica constitui um valor do direito.272Sylvia Calmes define segurança jurídica como sinônimo de confiança no direito ou na ordem jurídica, pois visa garantir a confiança. Enfim, consiste em assegurar, sem surpresas, a boa execução

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das obrigações e tende a excluir a incerteza na realização do direito.273Mas é Canotilho quem melhor explica o princípio da segurança jurídica, afirmando que as ideias nucleares desenvolvem-se em duas situações, quais sejam, (i) a estabilidade ou eficácia ex post, diante do fato de que as decisões, uma vez adotadas pelo poder público, não podem ser arbitrariamente modificados; e (ii) previsibilidade ou eficácia ex ante, que seria a exigência por parte dos cidadãos de certeza em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos.274Canotilho continua a diferenciar o princípio da segurança jurídica em relação aos atos jurisdicionais e aos atos da administração e é em relação a este último de que trata este trabalho.

Segundo Canotilho, a força de caso decidido dos atos administrativos gozam de uma certa imutabili-dade, da seguinte forma: (i) autovinculação da administração; (ii) tendência da irrevogabilidade do ato administrativo em face dos interesses dos parti-

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culares, por meio do princípio da proteção da confiança e da segurança. Essa situação ocorre tendo em vista que a administração pública deverá reagir a alterações fáticas por meios de atos provisórios ou precários, e por esse motivo é que deverá salvaguardar os princípios constitucionais, tais como a proteção da confiança, a segurança jurídica, a boa fé dos administrados e os direitos fundamentais.275Humberto Ávila afirma que o princípio da segurança jurídica deve ser visto como um valor substancial da vida humana, pois “um ordenamento previsível é muito melhor para o desenvolvimento econômico que um imprevisível”, mas que também deve ser consubstanciado como uma norma-princípio, pois a segurança jurídica denota um aumento no grau de previsibilidade que, apesar de figurarem em planos diferentes, mantêm uma correlação entre elas.

“Trata-se de planos diferentes, sujeitos a juízos diversos: segurança jurídica como fato é a capacidade de prever uma situação de fato; segurança jurídica como valor é a manifestação de aprovação ou de desaprovação a respeito da segurança jurídica; a segurança jurídica como

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norma é a prescrição para adoção de comportamentos destinados a assegurar a realização de uma situação de fato de maior ou menor difusão e a extensão da capaci-dade de prever as consequências jurídicas dos comportamentos.”276A respeito da Segurança Jurídica, o Min. Cezar Peluso cita em voto277 sobre a proteção a confiança legítima, que será tratado em tópico específico, vejamos o seguinte trecho doutrinário:

“A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva”. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado, até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. (...) A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estados, nos mais diferentes aspectos de sua atuação. (...)

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Parece importante destacar, nesse contexto, que os atos do Poder Público gozam da aparência e da presunção de legitimidade, fatores que, no arco da história, em diferentes situações, têm justificado sua conservação no mundo jurídico, mesmo quando aqueles atos se apresentem...

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