Da responsabilidade civil da sociedade de economia mista

AutorPedro Val
Páginas53-80

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Sujeita ao regime jurídico próprio às empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, como reza a Constituição, dessa sujeição decorre que a responsabilidade civil da S/A Mista é subjetiva, por ser esta a regra geral no sistema jurídico nacional.

Sendo subjetiva, a culpa pelo dano que causar a terceiros terá que ser provada para obrigar a S/A Mista a indenizar.

Mas se o dano provier da falha no serviço público prestado, que a S/A Mista explore em função de concessão ou permissão, sua responsabilidade

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será objetiva, de vez que dela, responsabilidade, não pode o Estado furtar-se pelo expediente de transferir a execução do serviço a um particular, providência inútil nos termos do parágrafo sexto do art. 37 da Carta Política, conforme remansosa jurisprudência da qual extraímos: "REsp. 28222 / SP ...Impossibilidade de exclusão de responsabilidade do município por ato de concessionário do qual é fiador da regularidade do serviço concedido. Omissão no dever de fiscalização da boa execução do contrato perante o povo. Recurso especial provido para reconhecer a legitimidade passiva do município...".

Mas existem situações em que uma atividade própria, que é privativa do Poder Público, por ser necessária à prestação do serviço concedido, parece ter sido transferida ao concessionário, mas essa aparência não é verdadeira, porque se a atividade for monopólio do Estado, não poderá ser transferida, de vez que indelegável. Em consequência, havendo falha no serviço indelegável, ainda que essencial à concessão, a S/A Mista não tem nenhuma responsabilidade pelo dano decorrente.

É, por exemplo, o caso dos eventos criminosos que atingem a vida humana, cuja reiterada ocorrência com danos incomensuráveis justifica sejam aqui objeto de análise. Tratam-se dos danos causados por animais aos usuários das rodovias cuja exploração é concedida a particulares, que podem ser a S/A

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Mista ou empresa completamente desvinculada de qualquer das esferas do Poder Público.

Sendo essencial distinguir de quais premissas provém conclusões às quais chegaremos, prefacialmente vamos classificar, em duas espécies, os animais que interessam a tal estudo: a) animais sob a guarda de pessoas físicas ou jurídicas; b) animais que não estão sob a guarda de ninguém.

QUANTO AOS ANIMAIS SOB A GUARDA DE PESSOAS. A guarda de qualquer animal, exercida diretamente pelo proprietário ou por preposto, confere ao dono (pessoa física ou jurídica) a responsabilidade de impedir que cause prejuízo a outrem. Esta responsabilidade, no atual Código Civil, é objetiva, salvo se provada culpa da vítima ou força maior: "Art. 936. O dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.".

A propósito, esclarece RUI STOCO: "Agora, contudo, a responsabilidade do dono ou detentor do animal é objetiva, bastando a existência de nexo de causalidade entre o comportamento do animal e o dano verificado para que surja o dever de indenizar." (Tratado de Responsabilidade Civil, 8ª ed. RT, pág. 1610).

Mas não nos parece haver responsabilidade objetiva ou culpa presumida do concessionário - S/A Mista ou não - nem mesmo por força do contido no

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parágrafo 5º do art. 588 do Código Civil de 1916, que cuidava de cercas em vias públicas, ainda que o dano tenha ocorrido durante a vigência do citado Diploma hoje revogado.

Culpa tem o detentor ou proprietário do animal - por si mesmo ou por preposto - que incidiu em ilícito em razão de negligência, imprudência ou imperícia, ato este causador do dano sofrido pelo usuário da rodovia, até porque os Repositórios Civis de 1916 e 2002 também determinam que o proprietário cerque sua propriedade para conter seus animais, conforme respectivas disposições ora transcritas: "Art. 588... § 3º A obrigação de cercar as propriedades para deter nos seus limites aves domésticas e animais, tais como cabritos, porcos e carneiros, que exigem tapumes especiais, cabe exclusivamente aos proprietários e detentores." (CC 1916); "Art. 1.297 ... § 3º A construção de tapumes especiais para impedir a passagem de animais de pequeno porte, ou para outro fim, pode ser exigida de quem provocou a necessidade deles, pelo proprietário, que não está obrigado a concorrer com as despesas." (CC 2002).

Cometendo o ilícito apontado, o proprietário do animal responderá pelo dano consequente e obrigado a indenizar o lesado, nos termos dos arts. 927 e 936 do repositório legal objetivo atual, de acordo com os fatos que originarem o direito do lesado à indenização.

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Mas quando desconhecido o proprietário, como ocorre na maioria das vezes em que o animal provoca um dano, parte prevalente da jurisprudência atribui responsabilidade a quem explora comercialmente a rodovia, dizendo que no pedágio pago está a contraprestação que cria o dever de prestar segurança contra tal abalroamento pelo usuário.

Ledo engano, pois um fato econômico - como o pagamento do pedágio - não atua no mundo jurídico, conforme lecionado por ALFREDO AUGUSTO BECKER: "Manicômio Jurídico Tributário... 4. OBJETIVO DO LIVRO. - Como todo o direito positivo, o Direito Tributário tem natureza instrumental e maneja-lo é Ciência que requer sensibilidade específica: atitude mental jurídica. ... Exemplo de carência de atitude mental jurídica é a divulgadíssima tese (aceita como coisa óbvia) que afirma ser a hipótese de incidência (‘fato gerador’, ‘fato imponível’, ‘suporte fático’) sempre um fato econômico." (Teoria Geral do Direito Tributário, ed. Saraiva - 1963 - págs. 3/15 - destaques do autor - negritamos).

Não se diga que hipótese de incidência seja expressão de uso exclusivo no Direito Tributário, pois é adequada a qualquer Ramo do Direito, uma vez que está contida no preceito de qualquer dispositivo legal (descrição hipotética de um fato que, se concretizado, provoca a aplicação da sanção, elementos estes - preceito e sanção - que constituem, ou integram,

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qualquer norma jurídica completa). Socorremo-nos novamente do insigne tributarista para melhor fundamentar a ideia: "34 ... Não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou comercial. Os vários ramos do direito não constituem compartimentos estanques, mas são partes de um único sistema jurídico, de modo que qualquer regra jurídica exprimirá sempre uma única regra (conceito ou categoria ou instituto jurídico) válida para a totalidade daquele único sistema jurídico. Esta interessante fenomelogia jurídica recebeu a denominação de cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico." (op. cit., pág. 110 - destaques do autor)

Se existe um fator econômico, tal fator não pode produzir efeitos jurídicos, enquanto não introduzido no sistema jurídico positivo, juridicizado, transformado em fato jurídico apto a produzir um efeito jurídico determinado, como discorreu SERGIO CAVALIERI FILHO: " 2.1 Fato jurídico - Para chegarmos ao exato lugar onde se situa a responsabilidade no plano geral do Direito, temos que partir da noção do fato jurídico. Dizia o grande Ihering que o Direito nasce dos fatos - facto jus oritur. Não é, todavia, qualquer fato social que faz nascer o Direito; somente o fato que tem repercussão jurídica. E esse fato é aquele que se ajusta à hipótese prevista na lei (fato abstrato)." (Programa de Responsabilidade Civil - 5ª ed. Malheiros, pág. 27 - destacamos).

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Outro fundamento jurisprudencial falho é o que afirma ser o uso da estrada - em todas as circunstâncias - um serviço disciplinado pelo código do consumidor. Entendemos, entretanto, que o usuário da estrada tem somente o direito de percorrer uma pista em boas condições, ter atendimento em defeitos do veículo e outros mais, desde que concertados no negócio jurídico estabelecido entre concessionário e usuário, negócio jurídico este que não é um contrato de transporte.

É de se destacar que os serviços prestados ao usuário da rodovia não se confundem, ou incluem, o serviço de transporte, que garante ao transportado chegar incólume ao seu destino.

A incolumidade do transportado integra, é da essência, de um contrato nominado - o de transporte de pessoas e suas bagagens - do qual tratam o art. 734 e seguintes do CC e não o Código do Consumidor.

Nem mesmo a obrigação de cercar as rodovias (§ 5º do art. 588 do CC de 1916) pode ser entendida como responsabilidade de preservar usuários de acidentes com animais. Pois se assim fosse, toda estrada deveria estar dentro de um túnel resistente, pois a mencionada cerca é inútil contra animais alados e alguns escavadores (v.g. as aves de porte como o tuiuiu e os mamíferos como tatu, que pelas

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dimensões podem causar graves danos, se abalroados por veículos).

Em tempos idos, VIRGÍLIO DE SÁ PEREIRA asperamente assim criticou o citado parágrafo 5º: "Que foi que ele (o § 5º) quis dizer com isso? Impor à Administração Pública o dever de vedar com tapumes e cercas as vias públicas desse imenso país, coisa que nem mesmo os romanos, mestres incomparáveis nessa matéria, pensaram em fazer nas suas estupendas estradas? (Manual do Código Civil Brasileiro, Vol. VIII, pág. 137, nº 124, ed. Ribeiro dos Santos, 1924).

Recentemente, no extinto Eg. Tribunal de Alçada de São Paulo - Apelação nº 878.571-3 - em decisão respeitante a indenização pretendida por usuário...

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