Da radical à radicada: alteridades entre franceses e escravos no Rio de Janeiro oitocentista

AutorDaniel Dutra Coelho Braga
CargoDoutor. Pesquisador autônomo, Florianópolis, SC, Brasil
Páginas95-114
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 94-114, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e64866 95/156
RESUMO
A cultura liberal francesa do século XIX estimulou uma série de identidades mobilizadas por estrangeiros
no Brasil. Para essa cultura, a persistente escravidão brasileira foi tema incontornável. Se viajantes
franceses mobilizaram uma alteridade radical em contraposição tanto à escravidão como a brasileiros
e africanos escravizados, franceses que buscaram se radicar no Brasil modularam outras formas
de alteridade. Mediante análise de relatos de viagens e alforrias, este artigo explicita os signicados
relacionais de liberdade e as alteridades em movimento emuladas em redes de sociabilidade que,
notadamente no Rio de Janeiro, uniram viajantes, agentes consulares, comerciantes e escravos. O
artigo demonstra em que medida estrangeiros radicados no Rio de Janeiro mobilizaram um vocabulário
de distinções sociais e alteridades diferente daquele mobilizado por viajantes em seus relatos.
PALAVRAS-CHAVE
Escravidão. Condição estrangeira. Culturas liberais.
ABSTRACT
French liberal culture in 19th Century provided identities for foreigners in Brazil. Within this culture,
persistent Brazilian slavery was an unavoidable subject. While French travellers emulated a radical
otherness in contrast to both slavery and enslaved Africans, French who sought to establish themselves
in Brazil ended up adhering to other kinds of otherness and identities. This essay highlights the relational
meanings of freedom and the identities in the move which had been emulated in social networks that united
travellers, consular ocials and slaves in Brazil, mostly in Rio de Janeiro, by analysing travel accounts and
manumission letters. It shows how settled foreigners used a vocabulary regarding social distinction and
otherness which was dierent from the one used by travellers in their accounts.
KEYWORDS
Slavery. Foreign condition. Liberal cultures.
Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 44, p. 94-114, jan./abr. 2020.
ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e64866 96/156
Daniel Dutra Coelho Braga
Em 1850, o outrora cônsul francês na Bahia, Francis de Castelnau, iniciava
publicações referentes à segunda expedição que realizara nas Américas. As
diferenciações entre os povos que encontrara, dentre as quais as que designou
“condições do trabalho”, condicionaram seu itinerário e a forma mediante a qual
discriminou as regiões que o compuseram, tal como recapitulado em seu relato:
Embarcados, no Pará, em um navio a vapor que o governo
brasileiro tinha colocado à minha disposição, com a benevolência
a que ele me havia acostumado durante todo o curso de minhas
viagens, dirigimo-nos a Caiena, onde o Sr. Deville cou doente.
Quanto a mim, tendo sido encarregado, por nosso governo, de
estudar as condições diversas do trabalho nas colônias livres
e de escravos, visitei o Suriname e Demerary, para me dirigir,
em seguida, a Barbados, Santa Lúcia e à Martinica, onde
passei algum tempo; depois, percorri rapidamente as pequenas
Antilhas, até São Tomás, de onde o navio a vapor inglês me
conduziu à Europa (CASTELNAU, 1850, p. 28-29, grifo nosso,
tradução nossa).1
Liberdade e escravidão foram objetos de estudo para Castelnau, mas também
categorias usadas para reiterar uma visão de mundo. É o que sugere sua menção
à passagem pela ilha de Goreia. Nela, o francês expressa tanto seu apreço pela
liberdade como uma distinção em relação ao “negro”, independentemente da posição
que este viesse a ocupar em eixo no qual, segundo Castelnau (1850, p. 44-45, grifo
nosso, tradução nossa), ao conectar a África e as Américas, ele conectaria, também,
“liberdade” e “escravidão”:
Seria impossível descrever a alegria que senti ao pisar, pela
primeira vez, no continente africano, onde tudo era tão novo
para mim. Tendo estudado, durante longos anos, a raça africana
transportada para as colônias da América, sempre tinha desejado
ardentemente vê-la em seu próprio país, livre e independente;
mas confesso que essa experiência só fez conrmar as ideias que
eu tinha formado sobre o pequeno desenvolvimento intelectual
dessa variedade da espécie humana. Aqui eu a encontrei,
tal como na América, embrutecida pela bebida e pelas mais
absurdas superstições; cômica em todos os seus movimentos,
ela lembra sem cessar o macaco. O fato é que, livre na África
ou escravo no Novo Mundo, o negro é sempre preguiçoso,
depravado, ladrão e mentiroso; e a extrema facilidade com a
qual se submete à escravidão é a prova da ausência, nele, de
uma das mais nobres faculdades da alma humana. Reduzido ao
cativeiro, o negro engorda; o índio da América se deixa morrer.2
1 Tradução realizada com base na edição de 1850 e na tradução editada por Maria Elizabeth C. de
Mello (2015, p. 34).
2 Tradução realizada com base na edição de 1850 e na tradução editada por Maria Elizabeth C. de
Mello (2015, p. 37).

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