A lentidão da justiça, as súmulas vinculantes e a independência dos juízes

AutorOlga Regiane Pilegis
Páginas162-209

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Introdução

O tema ganhou relevo no cenário jurídico nacional a partir da Emenda n. 45, de 8.12.2004, que permitiu ao Supremo Tribunal Federal aprovar súmulas vinculantes após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (art. 103-A da CF). A questão procedimental (aprovação, revisão e cancelamento das súmulas) veio a ser regulamentada pela Lei n. 11.417/ 06, gerando acalorados debates entre os operadores do direito sobre os limites do poder/ dever de uniformizar a jurisprudência, sobre as matérias que poderiam ser alvo de tal uniformização, e notadamente sobre o papel então relegado aos juízes de instâncias inferiores — se obrigados à observância da padronização jurisprudencial, e até que ponto. As alterações vieram com o objetivo de assegurar “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º inciso LXXVIII da CF), em momento histórico no qual pairava acirrado descontentamento da sociedade com a morosidade do Judiciário.

A promessa do legislador foi a de assegurar a celeridade processual e maior segurança jurídica. Importa saber se isso se cumprirá, ou se a novidade há de trazer, como muitos apregoam, o engessamento da criatividade jurisprudencial, o desrespeito à garantia de independência dos juízes e a “politização” das diretrizes jurisprudenciais, ao talante dos Ministros do Supremo Tribunal Federal nomeados pelo Presidente da República e que talvez, por isso mesmo, lhe possam guardar temor reverencial ou certa tendenciosidade em questões envolvendo interesses da administração pública. Em suma, o presente estudo discute questões que interessam à sociedade como um todo, pois diz respeito, em última análise, à qualidade da justiça que se deseja assegurar aos jurisdicionados.

1. Jurisprudência
1.1. Definições

O conceito de jurisprudência é “plurívoco”, no dizer de Rodolfo de Camargo Mancuso1.

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Nas “Institutas” de Justiniano, a expressão era assim definida: jurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia (jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto), conceito bastante amplo, hoje equivalente ao de “Ciência do Direito”2.

Com o passar do tempo, o vocábulo foi sendo tomado em outros sentidos. Mancuso, citando Rubens Limongi França3, apresenta cinco acepções para jurisprudência: num sentido largo (equivalente à primitiva definição de Justiniano), corresponde ao que se denomina ciência do direito, espécie do gênero Ética, voltado ao estudo sistemático das normas de conduta social de cunho coercitivo; etimologicamente, vem a ser o Direito aplicado aos casos concretos pelos seus operadores, como na antiga Roma se dava com os prudentes; no campo exegético ou hermenêutico, significa a interpretação teórica do direito feita pelos jurisconsultos e doutrinadores (acepção hoje assemelhada à da palavra doutrina); sob o ângulo da distribuição da justiça, representa a somatória dos acórdãos produzidos pela função jurisdicional do Estado; por último, num sentido técnico-jurídico, é a coleção ordenada e sistematizada de acórdãos consonantes e reiterados de um certo Tribunal ou de uma dada Justiça, sobre um mesmo tema jurídico.

Diante desta pluralidade de acepções, não é incomum o uso equivocado da palavra. Por exemplo, quando o operador do direito diz ter encontrado “jurisprudência” amparando determinada tese, pode estar se referindo apenas ao entendimento isolado de um Tribunal sobre determinado assunto, o que configura mero precedente, por lhe faltar uniformidade e constância.

Citando Carlos Maximiliano, assevera Mancuso4 que “uma decisão isolada não constitui jurisprudência; é mister que se repita, e sem variações de fundo. O precedente, para constituir jurisprudência, deve ser uniforme e constante”. Entendimentos díspares não caracterizam, portanto, jurisprudência. Apenas a reiteração de julgados que interpretem o direito num mesmo sentido pode receber o qualificativo técnico-jurídico em apreço, pois revestidos, como diziam os romanos, da rerum perpetuo et similiter judicatarum auctoritas (autoridade das coisas que devem ser julgadas sempre do mesmo modo). Ao simples conjunto de acórdãos que não traduzam uma posição dominante num tribunal, melhor que se utilize o termo “precedentes”.

Já o vocábulo “súmula” tem concepção unívoca. Provém do latim summula, significando “sumário, resumo”. É, no dizer de Marco Antonio Botto Muscari5, “uma proposição sintética, caracterizando o produto da jurisprudência assentada pelo tribunal; como regra, é emitida após diversos pronunciamentos da corte, num mesmo sentido, a respeito de certa matéria.” O mesmo autor, citando o escólio de Lenio Luiz Streck, especifica que as súmulas podem ser classificadas nos seguintes tipos: tautológicas, aquelas que apenas repetem exatamente o que diz a lei; intra legem, ou meramente interpretativas do texto

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legal; contra legem contra legemcontra legem contra legemcontra legem, aquelas que extrapolam os limites do ordenamento jurídico, constitu-indo autênticas criações legislativas, além das chamadas súmulas inconstitucionais inconstitucionaisinconstitucionais inconstitucionaisinconstitucionais. Quanto ao grau de obrigatoriedade, especifica que as súmulas podem ser persuasivas persuasivaspersuasivas persuasivaspersuasivas (não obrigatórias, nem para o tribunal que as emite), obstativas obstativasobstativas obstativas obstativas ou também chamadas de impeditivas de recurso (obstaculizam o seguimento do recurso para o juízo ad quem) e as s ssssúmulas úmulasúmulas úmulasúmulas vinculantes vinculantesvinculantes vinculantesvinculantes, aquelas dotadas de força obrigatória, se não para o órgão jurisdicional emitente, ao menos para os juízos monocráticos e colegiados que lhe são inferiores.

É dessa última modalidade de súmulas, introduzidas em nosso ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 45/04, que trata o presente trabalho. Vale colocar, desde já, que a novidade veio a lume em meio a grande polêmica, havendo quem enalteça suas qualidades como agente propiciador de segurança, estabilidade jurídica, isonomia das decisões e celeridade processual, ao lado daqueles que qualificam o instituto como inútil, além de pernicioso para a liberdade judicial e criatividade jurisprudencial.

1.2. O papel da Jurisprudência na construção do direito

Rios de tinta têm sido gastos para definir se a jurisprudência, entre nós, é ou não fonte do direito — ou, como preferem alguns, “forma de expressão do direito”. Nossa Lei de Introdução ao Código Civil não arrola a jurisprudência entre as fontes do direito, quando reza que ao ser a lei omissa, deva o juiz decidir o caso de acordo com a “analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Também não é prevista sequer entre as fontes formais secundárias, tal como se dá com a equidade (art. 127 do Código de Processo Civil).

Bem por isso, parte da doutrina nega à jurisprudência o conteúdo de fonte formal do direito. Faltar-lhe-ia a condição de “comando abstrato para fazer ou não fazer”, aquela condição impositiva de conduta obrigatória e geral, que caracteriza a lei. Sem generalidade, abstração e impositividade, funcionaria a jurisprudência apenas como um “meio suplementar de integração do Direito”6. Há, porém, árduos defensores de corrente diversa. Segundo Miguel Reale, em sua Teoria Tridimensional do Direito, alcança a jurisprudência a condição de verdadeira FONTE do direito, de vez que o magistrado, ao interpretar a norma legal, elabora a sua conversão em “norma particular”, que é a sentença, o seu entendimento da lei7. Também Muscari se afina com os defensores da jurisprudência enquanto fonte do Direito; ressalta, porém, a primazia da lei, funcionando a construção jurisprudencial como “autêntica norma costumeira”8.

Definida ou não como “fonte” do Direito, não se nega a grande influência que, no plano fático, a jurisprudência exerce na atividade dos julgadores, o que já se verificava mesmo antes da Emenda Constitucional n. 45/04. Ainda quando não dotados de efeito

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vinculante, granjeiam os verbetes jurisprudenciais sólido prestígio e grande atenção entre a comunidade jurídica, pois por meio de novas formulações, interpretando a lei formal em seu silêncio, obscuridade ou insuficiência, fornecem aos operadores do direito parâmetros que propiciam a desejada e mesmo necessária unidade do sistema9. Como lembra Muscari, “tão importante quanto o que a lei parece ter pretendido dizer, é aquilo que os tribunais afirmam que ela realmente diz”10.

A jurisprudência serve, portanto, para completar e aperfeiçoar a lei. Mas nos países cujo sistema jurídico teve origem na família romano-germânica, ainda prevalece o mito da superioridade da lei sobre as demais formas de expressão do direito (se bem que hoje abrandado, como veremos adiante). Como perspicazmente observado por José...

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