Da execução cambial sem cartula original na hipótese de pagamento parcial de títulos de crédito

AutorFabricio Gonçalves de Souza Sabina
Páginas99-109

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1. Introdução
1. 1 Apresentação do tema

Com a finalidade de financiamento, não raras vezes, negociações são celebradas entre instituições financeiras e/ou pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, como sociedades empresárias rurais ou urbanas, cooperativas etc, cujo resultado pode ser a emissão de títulos de crédito e financiamento rural, industrial, comercial, imobiliário,1 além de outros, conforme o caso concreto.

Insta salientar que não somente os valores são altíssimos, mas, que, também, muitas vezes, o pagamento é parcelado, de forma que a quitação se dá em várias parcelas diferidas no tempo, o que tem por corolário a ocorrência de pagamentos par-seja por con-dais durante meses ou anos,2

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venção, seja por própria disposição legal.3 Adendo a esse aspecto, como garantias e constantes na cártula, também, são constituídas hipotecas, penhores, além dos avais de praxe, o que, nesse caso, engendra a possibilidade de pagamento parcial por parte de vários coobrigados ou de apenas um.

Sendo assim, em face dos comandos do direito cambial, a situação gera dificuldades para a cobrança por parte daquele pagador parcial e destituído da cártula.

Nesse diapasão, para melhor compreensão do tema e da solução juridicamente adequada, o presente artigo apresenta um caso hipotético e paradigmático para as demais situações.

1. 2 Caso hipotético

E emitido um título de crédito, seja rural, industrial, comercial ou imobiliário, sendo que, em face do valor, se estabelece o pagamento parcelado no total de 13 parcelas, de periodicidade anual.

Insta salientar, ainda, que o emitente, portanto, principal devedor, descumpre com o convencionado, dessa forma tornando-se inadimplente, fato que, em virtude de qualquer razão, obriga um dos coobrigados4 a arcar com as parcelas previstas - portanto, a pagar os valores sucessivos e periódicos.

Sendo assim, a atitude desse coobrigado caracteriza-se como pagamento parcial, pelo menos até o adimplemento total da obrigação.

Em virtude dos inúmeros pagamentos parciais, o adimplente não fica de posse da cártula, em relação à qual, por sua vez, tem o credor o direito legítimo de retenção até o vencimento e recebimento da última parcela - portanto, até o vencimento e recebimento da integralidade da dívida.

1. 3 Quesitos

Em face do caso acima exposto, cabem as seguintes indagações:

(a) Qual o melhor momento para cobrança por parte do pagador parcial do valor devido: durante o pagamento das parcelas ou após o vencimento da obrigação?

(b) Quais as implicações para o adimplente da parcialidade da obrigação, caso venha a cobrar judicialmente após o vencimento total da obrigação?

(c) Há substrato jurídico para cobrança judicial por parte do mesmo, na condição de pagador parcial, via ação executiva, das parcelas pagas antes do vencimento total da dívida, em face da ausência da cártula?

(d) Quais são as cautelas que o pagador parcial deve tomar ao adimplir cada uma das parcelas?

(e) Outros esclarecimentos.

2. Análise
2. 1 Hipóteses

Em face do adimplemento das obrigações periódicas por parte do coobrigado,

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dúvidas não são vislumbradas no tocante ao seu direito de ação direta em face do emitente no tocante ao valor desembolsado, nos termos dos arts. 3045 e 346, III,6 do CC de 2002; e, por se tratar de um título de crédito, em face dos princípios7 e legislação pertinentes. Em suma, o caso apresenta clara e flagrante hipótese de sub-rogação de direitos.

Sendo assim, a doutrina contribui com o seguinte esclarecimento: "Dá para ver que a sub-rogação envolve substituição. Outra pessoa faz o pagamento, passando a ocupar o lugar daquela que recebeu, e transferindo-se a ela os direitos que este possuía. Define-se, pois, pagamento feito por terceira pessoa, a qual assume os direitos que tinha o credor".8

A título de curiosidade, insta denotar o fato de que, apenas por meio de uma análise perfunctória, o pagamento parcial afasta a noção de sub-rogação; uma vez que a doutrina muitas vezes elenca como requisito da caracterização da mesma o pagamento total.

Nesse sentido, a doutrina esclarece: "Quando apenas em parte ocorre a sub-rogação, por ter o terceiro solvido parcialmente a dívida, poderá surgir conflito de preferências, envolvendo a indagação a quem compete a garantia de se pagar pelos bens do devedor - se ao antigo credor, ou ao sub-rogado parcial. A resposta somente pode vir em favor daquele, pelo remanescente de seu crédito, pois que o sub-rogatário não tem um direito a ele oponível.

Mas, satisfeito o antigo credor com o recebimento do saldo, o terceiro sub-rogado tem os privilégios relativos à dívida que solveu na concorrência com os demais credores, mesmo anteriores à sub-rogação, pelo fato de substituir o sub-rogatário (CC, art. 9909)".10

Conforme exposto, o pagamento parcial não elide o instituto da sub-rogação.

No entanto, em face das peculiaridades, o caso proposto não apresenta fácil resolução quando subsumido às searas do direito processual civil cumulado com o direito cambiário, mais especificamente no tocante ao ajuizamento de ação executiva11 sem cártula, conforme será evidenciado.

Nesse diapasão, duas são as hipóteses. Veja-se:

(a) Primeiramente, o pagador da parcialidade da obrigação tem a opção de pagar todas as parcelas e somente no final da operação, de posse da cártula - o que, por sua vez, o legitima inquestionavelmente a exercer executivamente o direito de regresso -, vir a ajuizar a competente ação executiva em face, por exemplo, do emitente.

(b) Em segundo lugar, o pagador da parcialidade da obrigação tem a opção de cobrar do emitente cada parcela ou grupo de parcelas durante o período até o cumprimento total da obrigação.

2. 2 Implicações

Quanto à primeira hipótese apresentada, tecem-se os seguintes comentários.

A pretensão de cobrança pelo rito executivo, englobando o valor total pago con-

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solidado somente no transcurso do prazo de 13 anos, conforme o caso hipotético, nos termos do art. 585 do CPC e lastreada obrigatoriamente com a cártula, embora respeite o princípio da cartularidade,12 em face da instrução da ação com o original do título, de pronto estaria prejudicada, e, portanto, seria desinteressante, em virtude dos efeitos da prescrição,13 que, por sua vez, atingiriam algumas das parcelas, conforme inteligência e comando do art. 70 da Lei Uniforme de Genebra, baixada como Anexo I do Decreto 51.663/1966.14

Nesse sentido, o pagador parcial não teria seu direito de ação prescrito, o que não se confunde com a prescrição da pretensão em relação a algumas das parcelas, uma vez que á ação de execução poderia ser ajuizada. No entanto, o credor, ora pagador parcial, nunca estaria legitimado a cobrar a totalidade do valor, pois, tratando-se de parcelas periódicas e sucessivas, aquelas cujo vencimento e pagamento se deram em período superior a três anos15 de seus respectivos vencimentos e pagamentos não seriam mais exigíveis.16

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A necessidade de esperar o vencimento da operação encontra respaldo no fato da possibilidade de posse do título como instruidor da ação de execução, sem o qual a petição seria inepta,17 em virtude do respeito ao princípio da cartularidade.

Embora já se tenha tocado nesse tema anteriormente, nesse momento se faz oportuno desenvolver essa matéria. Conforme afirmado, não basta a existência do título em algum lugar, mas é necessário que o título, ou algum título, instrua a inicial, pois "esse documento é necessário para o exercício dos direitos nele mencionados".18

Mas os dados expostos depõem em sentido contrário à tese de permitir que o adimplente parcial continue adimplindo a obrigação, ou seja, continue pagando cada uma das parcelas, e esperando o vencimento da operação para, ao final, deter a posse da cártula, com o fim de instruir a ação de execução, pelas razões já evidenciadas.

Nesse sentido, uma vez hostilizada a primeira hipótese, cumpre analisar as im-plicações da segunda, qual seja, a cobrança de cada parcela ou conjunto de parcelas antes do vencimento da operação não em sede de cobrança cognitiva - o que, indubitavelmente, sempre é possível -, mas em sede de cobrança executiva, pelas suas vantagens.

Optando por essa via, surgem as seguintes implicações:

(a) Havendo pagamento parcial, o credor sub-rogado não tem direito ao título.

(b) Na ausência do título, a ação cambial (executiva) está, a priori, obstada, em obediência ao princípio da cartularidade.

(c) Nesse sentido, como cobrar via execução, uma vez que não se tem o título de crédito líquido, certo e exigível para instruir a inicial, nos termos do comando do art. 586 do CPC?19

2. 3 Solução

Primeiramente, insta destacar que toda a operação está inserida no contexto do direito cambiário, não podendo, destarte, a matéria ser analisada sem a devida reverência aos seus princípios e normas gerais. Destarte, deve ser encontrado nesse sub-ramo jurídico o regramento de normas que venha ao encontro do direito do pagador parcial, ou seja, o credor20 do valor consubstanciado em título de crédito parcialmente pago mas, no entanto, destituído da posse do mesmo.

Como toda execução pressupõe um título executivo, nos termos do art. 583 do CPC,21 sem o qual não pode prosperar, resta a dúvida: qual título deve instruir a ação, no caso apresentado?

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Primeiramente, dentro da perspectiva das letras de câmbio - título básico da teoria do direito cambial -, tem-se que as mesmas são títulos executivos, nos termos do art. 585,1, do CPC.

Em segundo lugar, vale analisar o instituto do pagamento parcial, o qual tem seus limites traçados pela Lei Uniforme de Genebra - letra de câmbio e notas promissórias.

Segundo a doutrina, "a cópia prevista no art. 51, segundo Mário Baccigaluppi (ob. cit., p. 192), corresponde a...

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