Da Epistemologia da Interpretacao a Ontologia da Compreensao: Gadamer e a tradicao como background para o engajamento no mundo (ou: uma critica ao juiz solipsista tupiniquim)/From the Epistemology of Interpretation to the Ontology of Comprehension: Gadamer and the Tradition as Background to the Engagement in the World (or: Criticism on the Solipsist Brazilian Judge).

AutorStreck, Lenio Luiz
  1. A Verdade Contra O Metodo: a importancia da tradicao na hermeneutica filosofica gadameriana

    1.1 Gadamer e o problema do metodo: criticas a hermeneutica de Schleiermacher e Dilthey e a retomada do circulo hermeneutico heideggeriano

    Desde Descartes, a Filosofia Moderna era orientada pela questao do metodo, ou seja, pelo estabelecimento de regras para a direcao do pensamento. O metodo era considerado enquanto uma rota certeira para alcancar a "certeza absoluta". Nesse contexto, a abolicao da especificidade do sujeito e da generalidade da cultura do investigador se impunha: acreditava-se em uma suposta universalidade, comum a todos os sujeitos, que somente poderia ser encontrada na "razao".

    Em virtude disso, o metodo cientifico entao gestado considerava as questoes relativas ao passado, a tradicao, como sinonimos de ignorancia. Focava-se, com otimismo, o futuro. O entendimento, aqui, pressupunha o afastamento da tradicao. Ou seja, o racionalismo cientifico, em sua busca pelo metodo, se distancia do mundo que o precede. Como observa Cortes (2006, p. 282), "sua assertividade repousa sobre um insulamento da consciencia que, ao encapsular a subjetividade num suposto reino de pureza e controle procedimental, tambem promoveu um divorcio da realidade."

    Nesse aspecto, Gadamer (1983) sustenta que o essencial nas "ciencias do espirito" nao e a objetividade, mas sim a relacao habitual com o objeto, por meio do ideal da participacao (Teilhabe) nos enunciados basicos da experiencia humana. Isso, nas ciencias do espirito, e o verdadeiro criterio para afericao do conteudo ou da ausencia de conteudo de suas doutrinas. E o modelo do dialogo possui um significado estrutural para essa forma de participacao, dado que o dialogo esta caracterizado pelo fato de que nele ninguem, por si so, contempla o que acontece nem afirma que domina, sozinho, o assunto. Pelo contrario, cada pessoa toma parte conjuntamente na verdade que se obtem em comum. Quer dizer: Gadamervai questionar a autoridade do metodo, ao mostrar que a verdade, ao inves de ser revelada pelo metodo, e por ele obscurecida. Na contramao dessa perspectiva, o filosofo vai voltar-se justamente a tradicao que, para ele, tem uma justificativa que esta alem do fundamento racional e, em grande parte, determina nossas instituicoes e atitudes.

    Em Gadamer, nao e possivel a cisao entre a tradicao e a razao. Tudo aquilo que e definido como racional, e sempre definido dentro dos padroes da tradicao. Como escreve o autor,

    "vivemos dentro de tradicoes, e essas nao sao um campo parcial de nossa experiencia do mundo nem uma tradicao cultural que consta apenas de textos e monumentos, transmitindo um sentido constituido pela linguagem e historicamente documentado. Ao contrario, e o proprio mundo experimentado na comunicacao que se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa infinitamente aberta. Nao e nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Toda vez que experienciamos algo, sempre que suplantamos a falta de familiaridade, sempre que se produzem iluminacoes, conhecimento, assimilacao, realiza-se o processo hermeneutico de insercao na palavra e na consciencia comum. A propria linguagem formulada em monologo, propria da ciencia moderna, so conquista a realidade social por essa via" (GADAMER, 2012, p. 55). Isso significa dizer que a tradicao e, na perspectiva gadameriana, uma forca vital inserida na cultura. Nao e possivel furtar-se a tradicao ao realizar uma investigacao cientifica: estamos sempre inseridos nela. O modus operandi filosofico gadameriano perpassa, portanto, pela recuperacao e pelo resgate de ideias reprimidas e esquecidas. E aqui um alerta mostra-se imprescindivel para a compreensao da postura do autor: Gadamer esclarece que sua hermeneutica pouco diz a respeito de suas aplicacoes e orientacoes praticas. A sua preocupacao real e filosofica. Logo no prefacio a segunda edicao de Verdade e Metodo o filosofo adverte: "o que esta em questao nao e o que fazemos, o que deveriamos fazer, mas o que nos acontece alem do nosso querer e fazer." (GADAMER, 2012a, p. 14).

    No percurso desenvolvido em Verdade e Metodo, Gadamer dialoga com outros autores que tambem se debrucaram sobre o tema da hermeneutica filosofica, como Schleiermacher e Dilthey. Claro que, para Gadamer (2012a), Dilthey e mais avancado que Schleiermacher porque se distancia da interpretacao psicologica, ou seja, seu foco esta longe dos significados subjetivos e parte em direcao a uma categoria mais ampla, a vida. Em Dilthey, o entendimento humano esta inextricavelmente ligado ao passado. E a categoria da vida e utilizada pelo autor justamente para mostrar que as interpretacoes no presente estao sempre conectadas a sua historia, ao seu passado.

    Nesse rumo, convem salientar que, na hermeneutica filosoficagadameriana, "o todo da cultura humana deve ser compreendido como envolvido num acontecer da historicidade de um sentido que nunca recuperamos em sua plenitude." Diante disso, torna-se possivel asseverar que "Gadamer acertou com esse seu projeto a mais coerente interpretacao de como devemos compreender a condicao humana na historia e na natureza." (STEIN, 2011, p. 23).

    E justamente aqui o ponto no qual reside a ruptura: a fenomenologia hermeneutica heideggerianae a analise da historicidade do Dasein buscavam uma renovacao geral da questao do ser, ou seja, estavam alem da busca por uma mera teoria das ciencias do espirito ou uma superacao das aporias do historicismo. Heidegger e responsavel pelo redespertar da questao do ser, com o que ultrapassa toda a metafisica tradicional.

    Gadamer e seu mestre, Heidegger, fazem uma ruptura com o esquema sujeito-objeto tipico da filosofia da consciencia e seu "cogito", dado que o compreender nao e mais uma mera homogeinizacao entre o conhecedor e o conhecido sobre a qual se assentava o "metodo" das ciencias do espirito (1). A partir de entao, passa-se a compreender que

    "a adequacao de todo conhecedor ao conhecido nao se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que recebam seu sentido da especificidade do modo de ser que e comum a ambos. E esta caracteristica consiste em que nem o conhecedor e nem o conhecido estao simplesmente dados 'onticamente'. Eles se dao 'historicamente', isto e, possuem o modo de ser da historicidade." (GADAMER, 2012a, p. 350). Em linhas gerais, portanto, pode-se dizer que a contribuicao de Heidegger foi demonstrar que as condicoes que tornam o pensamento possivel nao sao autogerados, mas sao estabelecidos bem antes de nos engajarmos em atos de introspeccao, ou seja, que nos ja estamos envolvidos no mundo bem antes de nos separarmos do mundo teoricamente para procurar entende-lo filosoficamente. Quer dizer: "em nuestra relacion com la tradicion pertenecemos a una comunidad interpretativa que esta continuamente en un proceso de formacion y de cambio." (ROLDAN, 2012, p. 26).Nao ha, portanto, terminantemente, qualquer possibilidade de cisao entre sujeito e objeto.

    Logo, o pertencimento do interprete ao seu objeto de investigacao agora obtem um sentido que pode ser demonstrado concretamente por meio da hermeneutica:

    "O Dasein, que se projeta para seu poder-ser, ja e sempre 'sido'. Este e o sentido do existencial do estarlancado. O fato de que todo comportar-se livremente com relacao ao seu ser nao possa remontar para alem da facticidade desse ser constitui o nucleo central da hermeneutica da facticidade e sua oposicao a investigacao transcendental constitutiva da fenomenologia de Husserl." (GADAMER, 2012a, p. 353.) Gadamer passa entao a analisar a significancia do circulo hermeneutico para Heidegger, como um preludio a sua propria tomada de posicao. Com efeito, sempre existe uma versao parcial do circulo hermeneutico em operacao nos entendimentos cotidianos do mundo, e isso nao passa despercebido pelo filosofo, que da importancia a essa "especie de dialectica continua enelmovimiento de comprension que va de la parte al todo, y viceversa." (ROLDAN, 2012, p. 25).

    O autor adverte para o fato de que quem busca compreender sempre esta sujeito a erros de opinioes previas que nao se confirmam nas proprias coisas. Logo, "elaborar projetos corretos e adequados as coisas, que como projetos sao antecipacoes que so podem ser confirmadas 'nas coisas', e, entao, a tarefa constante da compreensao", que so vai alcancar sua verdadeira possibilidade quando as opinioes previas com as quais se inicia a tarefa nao forem arbitrarias. Em virtude disso, "faz sentido que o interprete nao se dirija diretamente aos textos a partir da opiniao previa que lhe e propria, mas examine expressamente essas opinioes quanto a sua legitimacao, ou seja, quanto a sua origem e validez." (GADAMER, 2012a, p. 356).

    Portanto, e imprescindivel compreender que diante de qualquer texto, nao e tarefa do interprete a insercao direta e acritica de seus proprios habitos extraidos da linguagem. Pelo contrario, deve-se reconhecer que a tarefa do interprete e alcancar a compreensao do texto somente a partir do habito da linguagem da epoca e de seu autor. Alerta Gadamer (2012a, p. 357) que

    "de modo algum podemos pressupor como dado geral que o que nos e dito em um texto se encaixe sem quebras nas proprias opinioes e expectativas. Ao contrario, o que me e dito por alguem, numa conversa, por carta, num livro ou de outro modo, encontra-se por principio sob a pressuposicao de que o que e exposto e a sua opiniao e nao a minha, da qual eu devo tomar conhecimento sem precisar partilha-la. Todavia, essa pressuposicao nao representa uma condicao que facilite a compreensao; antes, representa uma nova dificuldade, na medida em que as opinioes previas que determinam minha compreensao podem continuar completamente desapercebidas." Nesse rumo, salienta Gadamer (2012a, p. 358) que "a tarefa da hermeneutica se converte por si mesma em um questionamento pautado na coisa em questao." Em outras palavras, afirma o autor que "compreender e estar em relacao, a um so tempo, com a coisa mesma que...

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