Da citação do trágico. Notas sobre tradição e intransmissibilidade

AutorVanessa Cunha Prado D'Afonseca
CargoMestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas321-336
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2015v12n1p321
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
DA CITAÇÃO DO TRÁGICO. NOTAS SOBRE TRADIÇÃO E
INTRANSMISSIBILIDADE
Vanessa Cunha Prado D'Afonseca
1
Resumo:
Se não há dúvida de que a tradição do teatro antigo nos legou algo de sua
experiência, a ponto de nomearmos tragédias algumas obras de Shakespeare e
Goethe e entendermos como trágicos também alguns momentos do cinema de
Pasolini e Bergman, como é possível falar em morte da tragédia, em rompimento da
mola trágica? Ao mesmo tempo, como é possível que um mundo sem deuses, com
uma compreensão da ação que a concebe guiada por uma faculdade interior que
nem existia para o grego do século V A.C., a vontade, comporte ainda lugar para
que, nele, algo se denomine tragédia? A solução a essas perguntas depende da
compreensão de história que orienta o pesquisador, pensador ou colecionador que
as formula. Tal diferença ficará muito clara se tomarmos como opostos o conceito de
transistoricidade característico da resposta de Vernant e Naquet a essas mesmas
perguntas e a noção de intransmissibilidade, indicada no uso das citações por
Hannah Arendt.
Palavras-chave: Tragédia. Instransmissibilidade. Transistoricidade. Hannah Arendt.
Vernant-Naquet.
A tragédia, nota Aristóteles, é a imitação de uma ação, mimesis
práxeos.“[...] Pílades, que fazer?” Exclama Orestes nas Coéforas e Pelasgo
no início de As Suplicantes verifica: “Não sei o que fazer; a angústia toma
conta de meu coração; devo ou não agir?”. O rei, entretanto, acrescenta
imediatamente uma fórmula que, ligada à precedente, sublinha a polaridade
da ação trágica: “Agir ou não agir, [...], e tentar o destino?” Tentar o destino:
nos Trágicos, a ação humana não tem força o bastante para deixar de lado
o poder dos deuses, nem autonomia bastante para conceber-se plenamente
fora deles. [...] de um lado, é deliberar consigo mesmo, pesar o pró e o
contra, prever o melhor possível a ordem dos meios e dos fins; de outro, é
[...] entrar num jogo de forças sobrenaturais sobre as quais não sabemos
se, colaborando conosco, preparam nosso sucesso ou nossa perda. Até no
homem mais previdente, a ação mais refletida conserva o caráter de um
ousado apelo aos deuses a respeito do qual só pela resposta que é dada e,
no mais das vezes, por experiência própria, se conhecerá sua importância e
sentido preciso. É no final do drama que os atos assumem sua verdadeira
significação e os agentes, através daquilo que realizaram sem saber,
revelam sua verdadeira face. Enquanto tudo não se consumou, ainda os
casos humanos continuam a ser enigmas que são tanto mais obscuros,
quanto mais os atores se julgam seguros daquilo que fazem e são. (Vernant
e Vidal-Naquet, 2005).
1
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea na Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: vanessadafonseca@hotmail.com
322
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.12, n.1, p.321-336, Jan-Jun. 2015
Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe exatamente
o que está fazendo; que sempre vem a ser “culpado” de consequências que
jamais desejou ou previu; que, por mais desastrosas e imprevistas que
sejam as consequências de seus atos, jamais poderá desfazê-lo; que o
processo por ele iniciado jamais termina inequivocamente num único ato ou
evento, e que seu verdadeiro significado jamais se revela ao ator, mas
somente à visão retrospectiva do historiador, que não participa da ação.
Tudo isso é motivo suficiente para que o homem se afaste, desesperado, da
esfera dos negócios humanos e veja com desdém a capacidade hum ana de
liberdade que, criando uma teia de relações entre os homens, parece
enredar de tal modo o seu criador que este lembra mais uma vítima ou um
paciente que o autor e agente do que fez. Em outras palavras, em nenhum
outro campo nem no labor, sujeito às necessidades da vida, nem na
fabricação, dependente das matérias-primas que lhe são dadas o homem
parece ter menos liberdade que no gozo daquelas capacidades cuja
essência é precisamente a liberdade, e naquela esfera que deve sua
existência única e exclusivamente ao homem. (Hannah Arendt, 2001a).
I
Tipicamente trágica é a ambiguidade insolúvel entre o excesso e a continência,
entre hybris e ethos, entre maldição e caráter na obra clássica de Jean-Pierre Vernant e
Vidal-Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga (2005). Ambiguidade reconhecível em
sua insolubilidade também na obra arendtiana. Excesso e continência, por exemplo,
manifestos na relação complexa entre o caráter malogrado da ação, apresentado por
Arendt n’A Condição Humana em que a ação é toda transbordamento: imprevisível,
ilimitada, irreversível (2001a, p.188-255) , e a condição de nosso espírito só vir a saber
da ação na continência do causal.
Desde que, para Arendt, é possível saber da ação ao desta ser feita uma
história (2001a, p. 204-5), causalidade e liberdade articulam-se tragicamente em um
agir que escapa ao controle instrumental de si mesmo e um pensamento sobre o agir
em que a própria narração da liberdade, ao fazer da ação uma história, torna-a
necessariamente ambígua pela tonalidade de causalidade que a coerência do enredo
lhe impõe.
Não nos contentemos, contudo, com as semelhanças descritivas. Em primeiro
lugar, é preciso notar que, em Arendt, se é possível falar em tragicidade, esta
precisa conceber-se secularizada, com a ação tornando-se dilemática não mais na
tensão de um atravessamento dos deuses no agir dos homens, mas por algo que lhe é
inerente. Na autora, o que faz da liberdade um enigma é a pluralidade, a condição de
que a ação incide e adquire sentido em uma teia de relações conformada nos atos e
palavras de outros homens, tornando impossível decidir de cada ação se esta é

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