Da alteração do prenome e do designativo de sexo da pessoa transexual como meios de efetivação do seu direito fundamental à saúde

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas541-579

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1 Transexualismo e direito à saúde: delimitação do objeto de estudo

A problemática do presente estudo diz respeito à possibilidade de alteração do prenome e do designativo de sexo da pessoa3transexual, que tenha ou não

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se submetido à cirurgia de transgenitalização, com o intuito de lhe assegurar, de modo efetivo, o seu direito fundamental à saúde.

Conforme será demonstrado, o transexualismo consiste na neurodiscordância de gênero, ou seja, o indivíduo identiica-se, psíquica e socialmente, como sendo do sexo oposto ao seu biológico. Há, assim, incompatibilidade entre a manifestação de gênero morfológica e a psíquica, provocando na pessoa transexual a repugnância veemente de seus órgãos sexuais externos, razão pela qual se vê obrigada a se submeter a tratamentos médicos visando a alteração de sua isionomia ? notadamente, de caráter hormonal ? e, até, a se submeter a cirurgia de redesignação sexual ? denominada transgenitalização.

Nesse contexto, tem-se por indiscutível a natureza terapêutica da cirurgia de adequação de sexo ? que se encontra regulamentada pela Resolução nº 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina (CFM) ?, na medida em que promove a conversão “curativa” do transexual, permitindo-lhe a sua integração pessoal ao gênero a que possui convicção de pertencer. Aliás, o transexualismo, identiicado como transtorno de identidade sexual, foi incluído na 10ª versão da Classiicação Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde (OMS), catálogo conhecido como CID-10. Destarte, a cirurgia de transgenitalização concretiza o direito à busca do equilíbrio corpo-mente, que possui por fundamento o direito ao próprio corpo, à identidade sexual4e à saúde.

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Contudo, o presente estudo não tem por desiderato abordar, especiicamente, o cabimento da cirurgia de redesignação sexual e seus efeitos decorrentes. O transexualismo aqui estudado não é identiicado como sendo uma doença que necessita de tratamento médico-terapêutico, até porque não se pode impor, compulsoriamente ao indivíduo a sua submissão a qualquer medida médica sob o argumento exclusivo de sua condição transexual. Na verdade, o que se busca é consagrar a saúde psíquica do transexual, o qual, enquanto pessoa que é, necessita ver assegurado o seu direito de se individualizar perante a sociedade por meio dos elementos que exteriorizam a sua personalidade.

Com efeito, a saúde é, inexoravelmente, ligada ao desenvolvimento da pessoa, em suas diversas projeções ? física, psíquica, intelectual, cultural ?, caracterizando-se, pois, como garantia para a preservação de sua dignidade. Vale dizer, a saúde não pode ser compreendida apenas em seu sentido biológico, na mera deinição de ausência de doença, haja vista que, para a sua integral efetivação, exige-se a promoção e a garantia da integridade psíquica, cultural e social do ser humano, às quais se soma a integridade física.

Nesse contexto, tem-se que a pessoa transexual, por se identiicar psicologicamente e socialmente como sendo do gênero oposto ao biológico e civil, acaba por viver à margem da sociedade, por se encontrar em situação de angústia, de incerteza, responsável por lhe provocar verdadeiro estado psíquico patológico. De fato, se a pessoa possui a aparência visual de determinado gênero, de acordo com o qual ela atua e é identiicada no meio social, a manutenção de seu registro civil de acordo com o seu gênero biológico acarreta-lhe inúmeras situações de constrangimentos, de equívocos, de humilhações, capazes de ofender, de modo quase irreversível, a sua integridade psíquica e social, negando-lhe, pois, a sua plenitude como pessoa.

Dessa forma, será defendido, neste estudo, que a plena efetivação do direito à saúde para a pessoa transexual exige que lhe seja assegurada a possibilidade de alteração do seu prenome e do seu designativo de sexo junto ao registro civil, permitindo-lhe, assim, o exercício da cidadania, o livre e adequado desenvolvimento de sua personalidade e, por consequência, assegurando a sua dignidade como ser humano.

Por im, ainda a título introdutório, cumpre ressaltar que o tema que será aqui abordado repercute, de modo direto e imediato, no âmbito do Direito das Famílias, em que, após o advento da Constituição Federal de 1988, houve a instituição de uma nova concepção de entidade familiar, que se caracteriza por ser

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pluralizada, democrática, igualitária substancialmente, além de representar um instrumento para realização pessoal de seus membros. Em vista disso, a pessoa transexual, antes mesmo de buscar a sua aceitação social, deve aceitar, para si, a sua real identidade e, em seguida, agir no sentido de obter, em seu seio familiar, o reconhecimento e valorização de sua personalidade. Outrossim, na medida em que se viabiliza a adoção da identidade de gênero psíquica, em detrimento da biológica, perante o registro civil ? mediante a alteração do prenome e do designativo de sexo ?, inúmeras outras questões surgem em torno da posição social ocupada pelo transexual, destacando-se, dentre outras, a validade de eventual relação conjugal que venha a formar e o seu enquadramento na relação paterno-ilial, questões estas que devem ser solucionadas à luz do valor da afetividade, vetor axiológico das relações familiares.

2 Saúde: conceito e abrangência

O termo “saúde” tem por origem a raiz etimológica salus, que designa, em latim, o atributo principal dos inteiros, intactos, íntegros. Já em grego, salus decorre do termo holos – raiz dos termos holismo e holístico – tomado no sentido de totalidade.5

Quanto à análise conceitual da saúde, é interessante iniciar a abordagem pelo conceito trazido por Abbagnano6, nos seguintes termos:

É a condição de bem-estar da pessoa nas suas diferentes funções: físicas, mentais, afetivas e sociais; não se identiica com a simples ausência de doença, mas com a plena eiciência de todas as funções: orgânicas e culturais, físicas e relacionais. [...] uma vez que o conceito de S. [saúde] deve ser entendido não só em sentido físico, mas também psicológico e moral, e que se identiica com a ideia de bem-estar em referência à pessoa na sua totalidade, compete situar o problema da S. no horizonte antropológico, que comporta o tratamento de questões não simplesmente médicas, mas propriamente ilosóicas, como as de natureza e norma.

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O conceito acima transcrito remete à origem do conceito de saúde, pois este decorre da íntima relação existente entre Filosoia e Medicina. Com efeito, o surgimento da Filosoia, na Antiguidade Clássica, traz consigo a substituição do conhecimento mítico pelo conhecimento empírico, na medida em que a realidade passa a ser explicada de modo racional, por meio da observação dos fenômenos da natureza. E a Medicina, por sua vez, passa a investigar a realidade do doente, tendo, assim, uma visão organicista da saúde, pois esta não diz respeito apenas ao corpo, mas também a sua relação com a mente, a sociedade e a natureza.

Nesse passo, médico e ilósofo partiam da observação da realidade posta, a im de buscar uma fundamentação racional para os fenômenos naturais. Mas, enquanto a Filosoia tinha por objeto o cuidado com a alma, o objeto da Medici-na era o cuidado com o corpo, sendo a saúde obtida pela união de corpo e alma sãos. Com efeito, de acordo com Aiub e Neves7:

O que se pretende enfatizar com toda essa comparação entre ilosoia e medicina antigas era a concepção de unidade e totalidade inerente a elas. Não se pode falar de equilíbrio do corpo sem o equilíbrio da alma. Igualmente, uma parte do corpo não pode ser curada senão em função do todo do corpo e o corpo não pode ser curado sem ter em conta a alma. Em outras palavras, o homem entendido como um todo.

Ademais, ressalte-se que esse caráter empirista atribuído à Medicina é responsável por traduzir o seu exercício como observação minuciosa de cada caso concreto, ou seja, o método de trabalho médico não buscava a generalização, mas sim tinha por im deinir o melhor tratamento para cada pessoa. A doença era vista como consequência do modo de vida levado por cada indivíduo, sendo tarefa da Medici-na, assim, encontrar a fórmula adequada para o cuidado do corpo.8

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Dessa forma, tanto a Medicina quanto a Filosoia, na Antiguidade, buscaram encontrar o equilíbrio do corpo e da alma – e, portanto, assegurar a saúde do indivíduo –, equilíbrio este obtido por meio da adoção de dieta adequada, que engloba todas as questões relativas ao regime da vida, ou seja, alimentação, ações e emoções, relacionamentos sociais e exercício do pensar. Logo, tinham por preocupação não a cura de doenças, mas sim a proilaxia, ou seja, a manutenção da saúde.

Contudo, tal visão da saúde sofre profunda alteração com a Modernidade, pois este momento histórico provoca a separação de corpo e alma, passando cada um a ser tratado como fenômenos isolados, passíveis, inclusive, de subdivisões. Assim, o corpo deixa de ser visto como um todo, sendo estudado, pela Medici-na, de modo fragmentado, dissociando as partes do conjunto e das inluências exteriores, o que direciona o enfoque das pesquisas para a busca da cura das doenças, e não mais para a preservação da saúde.

Destaca-se que o modo de pensar cartesiano é responsável por deixar como herança a dicotomia mente-corpo, inluenciando os estudos médicos, os quais passaram a isolar o corpo, para seccioná-lo em partes e se ocupar, apenas, das partes doentes. Com efeito, cabe destacar o seguinte trecho do estudo de...

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