Cumprimento da sentença relativa à obrigação de entrega de coisa
Autor | Humberto theodoro júnior |
Ocupação do Autor | desembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito |
Páginas | 857-869 |
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As obrigações de dar (ou de entrega de coisa, como fala o Código de Processo Civil) são modalidade de obrigação positiva, cuja prestação consiste na entrega ao credor de um bem corpóreo, seja para transferir-lhe a propriedade, seja para ceder-lhe a posse, seja para restituí-la1.
Em qualquer das modalidades da obrigação de dar, ocorrido o inadimplemento, cabível se torna a tutela judicial da execução para entrega de coisa. Não há mais, no direito moderno, razão para distinguir entre a obrigação de dar para transferência da propriedade (tradição da coisa móvel) e a de entregar ou restituir, em cumprimento de vínculo pessoal ou creditício. Toda execução de entrega de coisa, em princípio, deve ocorrer de "forma específica" (NCPC, art. 498),2pouco importando que a prestação decorra de direito real ou pessoal, de obrigação convencional ou legal.
I - Regime antigo
Antes da Lei nº 10.444, de 07.05.02, à época do Código anterior, poucas eram as sentenças condenatórias que levavam à entrega forçada de coisa, sem passar pela actio iudicati. A regra era a submissão geral das obrigações da espécie a dois processos: um de acertamento, para obtenção do título executivo judicial (ação condenatória), e outro para realização forçada da condenação (ação executória).
Sempre houve, porém, exceções. Assim é que, por tradição, nas ações de despejo e de reintegração de posse, embora haja sentença que condena à entrega de coisa
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certa (prestação de dar ou de restituir), a execução de seus decisórios não seguia o procedimento comum dos arts. 621 e segs do Código de 1973. É que essas ações, além de condenatórias, são "preponderantemente executivas", no dizer de Pontes de Miranda,3de maneira que já tendem à execução de suas sentenças independentemente do processo próprio, da execução forçada.
Assim, no despejo, o locatário, após a sentença de procedência, será simplesmente notificado a desocupar o prédio, e, findo o prazo da notificação, será de logo expedido o mandado de evacuando, sem sequer haver oportunidade para embargos do executado.4
Da mesma forma, na reintegração de posse, a execução da sentença faz-se por simples mandado e não comporta embargos do executado.5
Trata-se, como já ficou dito, de ações executivas, lato sensu, de modo que "sua execução é sua força, e não só efeito de sentença condenatória".6Tal mecanismo foi estendido a todas as obrigações de entregar coisa pela reforma do CPC de 1973 operada pela Lei 10.444/2002. O novo Código conserva esse procedimento.
Como não há embargos nessas execuções, o direito de retenção que acaso beneficie o devedor haverá de ser postulado na contestação, sob pena de decair de seu exercício.7Note-se que a mesma sistemática, a exemplo da lei anterior, é adotada, como regra geral pelo novo Código, sempre que se tratar de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de entregar coisa. Nessa hipótese, devem ser invocados em contestação tanto a existência de benfeitorias (art. 538, § 1º8) quanto o respectivo direito de retenção (art. 538, § 2º9).
Registre-se, finalmente, a possibilidade de execução para entrega de pessoa, nos casos de guarda de menores e incapazes, execução essa que se processará sob a forma de mandado de busca e apreensão.
II - A generalização da sentença executiva lato sensu
Com o advento do art. 461-A, no CPC/73, instituído pela Lei nº 10.444, de 07.05.02, o que era exceção passou a regra, de modo que nenhuma sentença de condenação ao cumprimento de obrigação de entrega de coisa se submeteria ao sistema da duplicidade de ações. Uma única relação processual passou a proporcionar
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o acertamento e a realização do direito do credor de coisa. Generalizou-se, no campo dessas obrigações, a ação executiva lato sensu. Desde então, apenas se empregará a ação executiva para os títulos executivos extrajudiciais.
O novo Código manteve o procedimento unitário, assim disciplinado:
a) Sempre que o credor reclamar, no processo de conhecimento, a entrega de coisa, o juiz lhe concederá a tutela específica, fixando, na sentença, o prazo para cumprimento da obrigação (art. 498, caput10)11, ou seja, para a entrega da coisa devida que pode ser móvel ou imóvel.
b) Após o trânsito em julgado da sentença, independentemente de nova citação, o executado será intimado a entregar a coisa devida, no prazo assinado na condenação. Questiona-se sobre a exigência ou não dessa intimação12.
Todavia, o art. 536, § 4º, manda aplicar o disposto no art. 525, à espécie. Este por sua vez, prevê o prazo de quinze dias para o executado apresentar sua impugnação, a contar do término do prazo do art. 523. Por último, o art. 523 estipula que o cumprimento da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado para cumprir a obrigação (pagar o débito) em quinze dias, devendo o mandado executivo ser expedido depois de ultrapassado o termo previsto para o pagamento voluntário. Com esse mecanismo remissivo do novo Código, parece-nos que o cumprimento da sentença relativo a prestação de entrega de coisa não prescinde de intimação do devedor (que se admite seja feita na pessoa do advogado da parte) para que se alcance o momento adequado à expedição do mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, com que se realizará a prestação satisfativa a que tem direito o exequente.13
c) Comunicado nos autos o transcurso do prazo sem que o devedor tenha cumprido a obrigação, expedir-se-á em favor do credor mandado para sua realização compulsória por oficial de justiça: o mandado será de busca e apreensão, se se tratar de coisa móvel; e de imissão na posse, se o bem devido for coisa imóvel (art. 53814). No primeiro caso, o oficial toma fisi-
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camente posse da coisa e a entrega ao credor; no segundo, os ocupantes são desalojados do imóvel, para que o credor dele se assenhoreie. A diligência, portanto, se aperfeiçoa com a colocação do exequente na posse efetiva e desembaraçada do imóvel disputado.
III - Providências cabíveis para reforçar a efetividade da tutela às obrigações de entrega de coisa
No regime do Código anterior, além de ter sido suprimida a ação de execução de sentença para as obrigações de entrega de coisa, que se cumprirão por meio de simples mandado expedido por força imediata da própria sentença condenatória, a Lei nº 10.444, de 07.05.02, reforçou a exequibilidade com enérgicas medidas de apoio, mandando aplicar-lhes os mesmos procedimentos coercitivos previstos para a execução das obrigações de fazer e não fazer e que se acham elencadas nos §§ 2º, 4º e 5º do art. 461, CPC/73 (art. 461-A, § 3º, CPC/73).
Dentre essas medidas acessórias, a de maior destaque é, sem dúvida, a permissão para empregar-se, também nas ações relativas às obrigações de dar, a multa periódica por retardamento no cumprimento da decisão judicial (astreintes). O novo Código mantém a sistemática de emprego das medidas de apoio em referência (art. 538, § 3º, c/c art. 536, § 1º). Para Araken de Assis, "a possibilidade desse cúmulo descansa na circunstância de a técnica da coerção patrimonial, em si mesma, prescindir da realização de atos materiais no processo pendente seguramente conduzirá à sua eventual cominação no mandado de citação". Destarte, se a entrega da coisa for efetivada no prazo legal, a multa não será devida. Entretanto, se o mandado for descumprido, a "multa passará a fluir e o respectivo crédito há de ser executado autonomamente".15558. Execução específica e execução substitutiva
Tal como se passa com as obrigações de fazer e não fazer, o art. 498, do NCPC16 destina ao julgamento das prestações de entrega de coisa a "tutela específica", ou seja, o devedor haverá de ser condenado a realizar em favor do credor, a transferência da posse exatamente da coisa devida (caput). A conversão da obrigação em perdas e danos ("tutela substitutiva") não é faculdade do juiz e somente acontecerá em duas situações:
-
se o próprio credor a requerer, nos casos em que o direito material lhe permitir tal opção; ou b) quando a execução específica mostrar-se impossível (v.g., perecimento ou desvio da coisa, de modo a torná-la inalcançável pela parte) (art. 499, aplicável também às obrigações de dar ou restituir, por força do § 3º do art. 538).
Ao contrário, porém, do que se dispunha acerca das obrigações de fazer e não fazer (art. 461, caput, CPC/73) não havia, na Codificação anterior, no caso de obrigação de
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entrega de coisa a previsão de substituir a prestação específica por outra que produzisse resultado prático equivalente ao adimplemento (v., retro, o Capítulo XV).
Não sendo localizada a coisa, haveria a conversão em perdas e danos, como, aliás, dispõe a lei material (Cód. Civil, art. 234, in fine).17Esta conversão - "tutela substitutiva" - podia ser pleiteada pelo credor (a) na petição inicial; ou (b) em petição avulsa, no caso de a impossibilidade de alcançar a coisa devida acontecer durante a fase de cumprimento da sentença, hipótese em que se transformava em incidente da execução. Nesta última eventualidade seria objeto de decisão interlocutória, impugnável por meio de agravo de instrumento, e a iniciativa tanto poderia partir do exequente como do executado (ver, retro, os nos 182 e 183). O que não se admitia era que o processo caísse num impasse insolúvel, quando a prestação originária não mais comportasse execução específica. O destino natural do processo seria a conversão em indenização, cujo valor e cuja realização se dariam no mesmo...
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