Cultura política e democracia

AutorHugo Cavalcanti Melo Filho
Páginas83-105

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5.1. Importância de uma cultura democrática no Judiciário

A função jurisdicional, para ser exercida democraticamente, tem de assentar numa cultura democrática114. A inexistência dessa cultura, que conduz à forma oligárquica de governo dos Tribunais explicitada nesta análise, impede a construção de um Judiciário democrático, porque estruturas internamente não democráticas não podem produzir relações externas democráticas.

Para Robert Dahl (2001), o pluralismo cultural em uma sociedade — e entre suas instituições, por consequência — não favorece a democracia. Dahl (2001:166) considera que instituições políticas democráticas têm maior probabilidade de se desenvolver em um ambiente culturalmente homogêneo, sem subculturas muito diferenciadas e conflitantes.

No Brasil, desde o início da transição democrática, a sociedade e as instituições vêm se democratizando e se adaptando à nova realidade política. Vem se formando uma cultura democrática, pela assimilação de valores democráticos, exceto no Poder Judiciário.

A partir das comparações feitas no curso deste trabalho, pode-se concluir — e é isso que se considera para os fins deste trabalho —, que o sistema judiciário constitui uma subcultura na cultura brasileira.

À arguta visão de Souza Santos, o fenômeno não passou despercebido:

A organização judicial estruturada em forma piramidal controlada no vértice por um pequeno grupo de juízes de alto escalão, onde o prestígio e a

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influência social do juiz dependem de sua posição na hierarquia profissional, acaba perpetuando o ethos profissional dominante e fortalece o espírito corporativista, o que, na prática, contribui para um isolamento social do judiciário, fechando-o enquanto a sociedade em que se assenta vai se diversificando e torna-se cada vez mais plural. (2007:79, grifos do autor)

Uma cultura democrática só se desenvolve em um ambiente em que haja convicções democráticas: práticas, ideias e valores democráticos (DAHL, ibidem: 174).

Por outro lado, assim como uma cultura política democrática ajuda a formar cidadãos que acreditem que democracia e igualdade política são objetivos desejáveis e que as instituições democráticas devem ser mantidas (DAHL, ibidem: 174), esta mesma cultura, se desenvolvida no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, traria as mesmas consequências.

Como não é isso que ocorre, não há como evitar o conflito da subcultura autoritária do Judiciário com a cultura democrática que, a cada dia, se fortalece na sociedade. E conflitos culturais impõem um problema para a democracia (DAHL, ibidem: 166).

As relações internas praticadas no Poder Judiciário, hoje, são o resultado de uma fórmula idealizada há trinta e cinco anos, em pleno regime militar, como já demonstrado (item 2.3). Não existe, portanto, uma cultura política democrática no Judiciário brasileiro.

E qual a importância da existência de uma cultura democrática? A resposta a esta questão restará facilitada se tiver como ponto de partida a definição de Samuel Huntington (2002:13) para cultura:

Cultura, em termos puramente subjetivos [é definida] como os valores, as atitudes, as crenças, as orientações e os pressupostos subjacentes que predominam entre os membros de uma sociedade.

A referência central da cultura política são as relações de poder e de autoridade, o conjunto de relações de dominação e sujeição, a partir das quais se estrutura a vida política. Daí o interesse de compreender de que maneira se associam cultura e estrutura políticas, isto é, quais os fatores culturais que se associam positivamente com instituições democráticas implantadas, ou melhor, em que medida a cultura política democrática ajuda a modelar as instituições políticas ou, ainda, se a cultura é causa ou consequência do modo de governar as instituições (PESCHARD, [s.d.]).

Como sustenta Larry Diamond (1994a:21),

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cultura política está longe de ser um fenômeno imutável. Mudanças sociais e econômicas, mobilização social e cívica, prática institucional, experiência histórica [...] podem modificar ou gradualmente transformar os valores políticos predominantes, crenças e atitudes [...].115De qualquer modo, os padrões axiológicos não se alteram no mesmo ritmo das práticas e das instituições políticas. Os valores se modificam muito lentamente em uma sociedade116. Por isso, há uma primazia dos fatores culturais sobre os estruturais, “justamente porque o cultural tem um maior grau de penetração e de persistência” (PESCHARD, idem)117. Daí, a importância da cultura.

Não se pode estabelecer quais os padrões culturais que dão suporte a uma democracia estável. É necessário investigar de que maneira se edifica o aparato cultural sobre o qual descansam e se recriam certas instituições políticas propriamente democráticas (PESCHARD, idem), porque “mudanças no status [...] ou estabilidade da democracia raramente ocorrem sem algum visível envolvimento de uma mudança — ou não mudança — da cultura política” (DIAMOND, 1994a:22)118.

Huntington (2002:13) apresenta interessante reflexão de Moynihan sobre a importância da cultura:

Talvez as palavras mais sábias sobre o lugar da cultura nos negócios humanos sejam as de Daniel Patrick Moynihan: “A verdade central dos conservadores é que a cultura e não a política determina o êxito de uma sociedade. A verdade central dos liberais é que a política pode mudar a cultura e salvá-la de si mesma”.

Vê-se, claramente, que a cultura, a depender do ângulo de visada, pode ser vista como variável dependente ou independente. Huntington (2002:13) observa que a maioria dos trabalhos sobre o tema se concentra na cultura como variável independente ou explicativa. Se fatores culturais afetam o progresso humano e às vezes o impedem, entretanto, também estamos interessados na cultura como variável dependente, isto é, a segunda verdade de Moynihan: como pode a ação política, ou outra forma de ação, mudar ou eliminar obstáculos culturais ao progresso?

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Por seu turno, Harrison (2002:30) afirma categoricamente que cultura não é uma variável independente. Ela é influenciada por numerosos outros fatores (...). Com respeito à relação entre cultura e instituições, Daniel Etouunga-Manguelle diz: “a cultura é a mãe; as instituições são os filhos”. Isto é especialmente verdade a longo prazo. A curto prazo, mudanças institucionais, geralmente impelidas pela política, podem influenciar a cultura à maneira da sábia observação de Daniel Patrick Moyninhan [...].

A despeito da discussão quanto ao peso específico que se atribua à cultura política como variável que influi na construção e consolidação de estruturas democráticas119, não pode haver dúvida de que é necessário fomentar um padrão de orientações e atitudes propícias à democracia (PESCHARD, [s.d.]).

Aplicando-se este arcabouço conceitual à realidade do Poder Judiciário, constata-se que, hodiernamente, pelo menos três modelos de magistratura são delineáveis — e aqui utilizo as observações genéricas de Eugênio Zaffaroni (1995: passim) sobre o tema: o empírico-primitivo, o técnico-burocrático e o democrático.

O modelo democrático contemporâneo parte da seleção técnica dos juízes, mas introduz aprimoramentos democráticos nos mecanismos seletivos. Como refere Luiz Flávio Gomes (1997:15-23), reduz o formalismo, confere primazia ao controle de constitucionalidade das leis, com ênfase para o controle difuso. Há suficiente segurança jurídica, estabilidade jurisprudencial, bom funcionamento institucional, respeito à legalidade e à constitucionalidade. Nele, o juiz é politizado, engajado eticamente, tem nítida preocupação com os direitos fundamentais, é pouco burocratizado, tem independência real e não se sub-mete hierarquicamente.

Não se pode classificar o quadro brasileiro como democrático. Os juízes são selecionados por concurso público, mas não existe grande preocupação com seu conhecimento interdisciplinar e crítico. No geral, são pouco politizados e eticamente engajados, têm alto apego à jurisprudência estandardizada e, em boa medida, administrativamente submissos aos “superiores hierárquicos”, o que mitiga sua independência. Há pouca sensibilidade para as desigualdades sociais, morosidade marcante, pouca afeição ao controle de constitucionali-dade, relativa segurança jurídica. Os critérios promocionais são discutíveis, a escolha dos membros dos Tribunais é feita de forma acentuadamente política e os órgãos diretivos são eleitos pelas cúpulas dos Tribunais. A maioria

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dos juízes não participa das deliberações e sequer opinam na construção das normas internas das Cortes.

Assim, embora tenha na magistratura técnica o seu ponto forte, é estruturado de forma exageradamente burocrática, hierarquizada, marcada por controle funcional verticalizado.

Pode-se dizer que, no Brasil, passamos do modelo predominantemente empírico-primitivo, que marcou os regimes autoritários latino-americanos, para o técnico-burocrático, característico dos Estados de Direito regidos pela legalidade e distantes da constitucionalidade, com pouca preocupação com a democracia substancial (GOMES, 1997:17).

Tratando da situação portuguesa — que não difere, no particular, do caso brasileiro, Sousa Santos (2007:68) obtempera que a grande característica desse quadro é o predomínio de uma cultura normativista, técnico-burocrática, que se manifesta de múltiplas formas, entre elas, o privilégio do poder e o distanciamento da sociedade.

Constata Sousa Santos (ibidem: 69) que a cultura judicial promove tratamento diferenciado entre os cidadãos, que deveriam ser vistos como titulares de iguais direitos e deveres. Ao contrário, reconhecem-se privilégios ao poder...

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