Cultura escrita: práticas de leitura e do impresso

AutorLidia Eugenia Cavalcante
CargoDoutora em Educação. Professora do Departamento de Ciências da Informação Universidade Federal do Ceará
Páginas1-12

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Lidia Eugenia Cavalcante

Doutora em Educação Professora do Departamento de Ciências da Informação

Universidade Federal do Ceará

lidia@ufc.br

1 Introdução

Na clássica obra “O Aparecimento do livro”, produzida em meados do século XX, são abordadas questões para além da materialidade do livro e sua trajetória. Os autores, grandes conhecedores da historicidade do manuscrito e do impresso, revelam que têm como finalidade “estabelecer como e porque o livro impresso foi algo completamente diferente de uma realização técnica cômoda e de uma engenhosa simplicidade...” (FEBVRE, MARTIN, 1992, p.15). No prefácio escrito por Lucien Febvre fica claro o quanto representaria para a cultura escrita – pósGutenberg – o surgimento do livro impresso como instrumento incontestável para o desenvolvimento das sociedades modernas a partir de então. Mesmo com a limitada capacidade à sua difusão, o livro se firmava,

... como um dos mais poderosos instrumentos de que pôde dispor a civilização ocidental para concentrar o pensamento disperso dos seus representantes [...] e, por isso mesmo um poder incomparável de penetração e de irradiação; assegurar, num

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tempo mínimo, a difusão das idéias através de todo o domínio ao qual os obstáculos de escrita e de língua não proíbem o acesso; criar, além disso, entre os pensadores e, além de seu pequeno círculo, entre todos os que usam o pensamento, novos hábitos de trabalho intelectual: numa palavra, mostrar, no Livro, uma das formas mais eficazes desse domínio de mundo.” (FEBVRE, MARTIN, 1992, p.15)

Citando essa obra seminal para o estudo da cultura escrita, este texto visa apresentar reflexões históricoculturais sobre a materialidade do livro, as práticas de leitura e a presença do leitor. Não se trata de tentativa de “medir” o tempo ou fortalecer qualquer espécie de dominação da cultura letrada, mas tecer reflexões sobre as mediações possíveis que, de alguma forma, geraram reações afetivas, transgressoras, inusitadas; de paixão e ódio, viscerais, contraditórias, silenciosas ou ruidosas em séculos de tradição literária e apropriação da palavra escrita. É importante salientar que provavelmente nunca se estudou tanto a historicidade do livro como em tempos atuais. Não se trata mais de tema recorrente apenas aos cursos de Biblioteconomia ou História; as ciências humanas e sociais, de modo geral, sob perspectivas distintas (históricas, sociológicas ou filosóficas), têm buscado compreender as práticas, os fenômenos e as mutações que sustentam tal suporte por séculos. Por outro lado, preocupamse também com o fenômeno da convergência digital dos leitores contemporâneos, cujas respostas são percebidas cotidianamente no uso da Internet e de seus conteúdos mais buscados pelos jovens como: Orkut, Google e MSN. Para Chartier (2001, p. 19),

Nas novas telas – as dos computadores – há muitos textos, e existe uma possibilidade certa de uma nova forma de comunicação que se articula, agrega e vincula texto, imagens e sons. Assim, pois, a cultura textual resiste ou, melhor dito, se fortalece, no mundo dos novos meios de comunicação.

Também é preciso compreender que a dinâmica dada ao virtual, sob perspectivas históricas e sociológicas, transformou crenças e ideologias do inconsciente coletivo acerca do valor da informação, do objeto científico, do documento e da concepção de autor, pertença, posse e instituições. Dessa forma, mais do que significar um objeto de análise, as transformações ocorridas com a cultura escrita vão além da materialidade. Significa, portanto, reconhecer aquilo que Bachelard (1996) chama de “rupturas epistemológicas”, ou dito de outra forma, “mudanças paradigmáticas” (KUHN, 1975).

2 A cultura escrita

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Quais são os efeitos da cultura escrita para as sociedades? Certamente se trata de pergunta complexa e antiga, pois, já no século XV se ensaiavam respostas para esta questão. Entretanto, foi com a modernidade que se evidenciou expressiva preocupação com as conseqüências da palavra escrita, discussão que tomou fôlego nos séculos XVIII e XIX. Existem aspectos que se atrelaram de modo muito peculiar à uma tradição intelectual, especialmente na França, cujas novas formas de conceber o mundo pregadas pelos iluministas, enfraquecem as estruturas políticas e religiosas conservadoras, se espalhando por toda a Europa.

Há, portanto, particularidades da cultura escrita, que se efetivaram no Siècle des Lumières e se consagraram no “agir” do espírito dos autores daquela época, cuja propagação influenciará definitivamente o mundo ocidental. Por exemplo, a circulação de idéias efetivada por meio da Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, produzida por Diderot e D’Alembert, e que consagrou o pensamento de nomes como Voltaire, Rousseau e Montesquieu.

A “crise do livro”, forte discussão da atualidade, depois de séculos de tradição literária, tem sido alvo contínuo dos debates intelectuais e acadêmicos. Porém, de acordo com Chartier (2001, p.21), a “Crise do livro apareceu na França em 1890”. Já naquele período, editores e livreiros, entre outros, mostravamse preocupados com uma superprodução livresca e que o mercado não tivesse condições de absorver. “Mas essa crise do final do século XIX indica algo mais profundo, que ocorre quase que desde os primeiros livros impressos, frente a pensamentos contraditórios sobre a cultura escrita.” (CHARTIER, 2001, p.21). Por um lado, a forte obsessão pelo patrimônio escrito, o medo da perda e o temor à “domesticação da abundância textual”. Por outro, o “temor ao excesso”, que fortalece e instaura a presença de bibliotecas e os sistemas de classificação, “... instrumentos para controlar esse medo de que se multipliquem os textos, de que, finalmente, se transforme em um excesso perigoso e temível” (CHARTIER, 2001, p.21) para a modernidade.

Todavia a forte presença de elementos políticos, religiosos e culturais também marcou a chamada crise do livro no “século das luzes”, influenciando tanto as práticas de leitura da época como as representações do livro. Darnton (1998, p.20) em Os Bestsellers proibidos assinala que na França prérevolucionária certos livros eram considerados ilícitos e subversivos - de acordo com os editos reais e relatórios da censura - se solapassem a autoridade do rei, atacassem a Igreja ou ferissem a moralidade convencional, ou seja, tudo que contrariasse a religião, o Estado e os bons costumes da época.

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Entretanto, as práticas recorrentes de...

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