A cultura do diálogo e da mediação no Brasil

AutorTauã Lima Verdan Rangel
CargoMestre em ciências jurídicas da UFF
Páginas50-68

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A participação de comunidades periféricas nas decisões de governo se apresenta como grande desafio, unindo esforços para a solução de conflitos através da conciliação

O conflito é algo intrínseco à condição humana, surgindo a partir do momento em que a sociedade é constituída, derivando das pretensões adversas apresentadas pelos indivíduos em contínua convivência. Neste sentido, o conflito materializa o dissenso, decorrendo das expectativas, valores e interesses contrariados. "Embora seja contingência da condição humana, e, portanto, algo natural, numa disputa conflituosa costuma-se tratar a outra parte como adversária, infiel ou inimiga" (Vas-ConCeLos, 2012, p. 19). Desta feita, a percepção do conflito experimentada pela sociedade contemporânea transmuda a parte como adversária, apenas por apresentar objetivos distintos e dissonantes, tal como responsabiliza aquela como causadora da discórdia, sendo, portanto, a raiz do problema que atenta contra a pacificação social, devendo, pois, ser expurgado. Ao lado disso, a partir de uma perspectiva puramente legal, "o conflito é resultado de uma violação da lei ou de uma desobediência a um padrão, fato que lhe confere uma aversão social", segundo Foley (2011, p. 246).

Corriqueiramente, é verificável uma conjunção de esforços, por vezes sobre-humanos, para concentrar todo o raciocínio e elementos probatórios na busca insaciável de alcançar novos fundamentos para fortalecer o posicionamento unilateral, com o objetivo único de enfraquecer e destruir os argumentos apresentados pela parte ex-adversa. Tal cenário é tangível, principalmente, em processos judiciais, nos quais o desgaste das partes é evidente, quer seja em razão da morosidade, quer seja em decorrência do envolvimento psicológico na questão.

1. A ressignificação do vocábulo "conflito" na realidade contemporânea

A visão tradicional que identifica o conflito como sendo algo ruim é tão arraigada na socie-dade contemporânea que obsta os envolvidos de analisarem a questão de forma madura, compartilhando a responsabilidade sobre a questão; em vez disso promove uma constante busca em transferir "ao outro" a culpa pelo surgimento e o agravamento do litígio. Ao invés de envidar esforços para tratar a controvérsia por meio de estratégias sóbrias e racionais, a abordagem tradicional do dissenso concentra todos os empenhos em identificar o culpado pelo surgimento do conflito e puni-lo. Foley, neste sentido, anota:

No sistema judicial oficial, o conflito é solucionado por meio da aplicação do ordenamento jurídico ao caso concreto. O processo é o palco no qual interesses são dialeticamente confrontados sob uma aura adversarial que confere ao conflito uma dimensão de disputa. O vencedor da demanda encontra satisfação de seus interesses materiais e o derrotado, em geral,

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sente-se injustiçado. Não há um processo de compreensão das origens e das circunstâncias em que se situa o conflito, tampouco se verifica uma participação na busca de uma solução criativa capaz de contemplar os reais interesses em disputa (2011, p. 248).

A VISÃO TRADICIONAL QUE IDENTIFICA O CONFLITO COMO SENDO ALGO RUIM É TÃO ARRAIGADA NA SOCIEDADE QUE OBSTA OS ENVOLVIDOS DE ANALISAREM A QUESTÃO DE FORMA MADURA, COMPARTILHANDO RESPONSABILIDADES

O sistema jurídico em vigor apresenta como robusto aspecto a confrontação entre as partes em litígio, agravando, comumente, celeumas inúteis, alongando as batalhas e fomentando o confronto entre os envolvidos no dissenso causador da lide. Trata-se da valoração do dualismo perdedor-ganhador alimentado pelo sistema processual adotado, no qual, imperiosamente, a morosidade do processo acarreta o desgaste ainda maior, comprometendo, por vezes, o discernimento dos protagonistas para uma abordagem madura da questão. No sistema vigente, pautado na conflituosidade que caracteriza os procedimentos judiciais, os litigantes são obrigados, regularmente, a apresentar motivos justificadores para a existência da contenda, buscando se colocar em situação de vítima e à parte ex-adversa como culpada pela ocorrência da discórdia, utilizando, por vezes, de argumentos que são hipertrofiados e que não refletem, em razão do grau de comprometimento psicológico dos litigantes, a realidade existente, aguçando ainda mais a beligerância das partes.

Ademais, a tônica desenvolvida na liturgia processual, pragmática, engessada, voltada à satisfação de índices e metas estabelecidos, com o único intento de promover a materialização ao direito fundamental e constitucional à duração razoável do processo, mascara um sistema ineficiente, no qual não se trata o problema (conflito), mas tão somente coloca fim a mais um processo, atendendo às expectativas frias e débeis de finalização de processos. Ora, o apostilado processual não se resume a uma sequência lógica de peças que observam um rito previamente estabelecido, culminando, em sede de primeiro grau, com a prolação de uma sentença que, por excelência, encerra a prestação jurisdicional. Ao reverso, trata-se de um compêndio que reflete, comumente, as angústias e anseios das partes, os quais, mais que o pronunciamento do Estado-juiz, buscam o tratamento da divergência, das causas ensejadoras e consequências decorrentes do dissenso, de maneira a abreviar uma situação que causa desgaste emocional, psicológico e físico.

O estado emocional fomenta as polaridades e atalha a percepção do interesse comum, encobrindo-o sob a falsa perspectiva de atingir apenas o interesse individual, mantendo-se incólume aos efeitos reflexos advindos do desgaste proporcionado pela gestão ineficiente do conflito. Como bem destacam Morais e Spengler (2008, p. 54), "o conflito transforma o indivíduo, seja em sua relação um com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradas e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras". Partindo da premissa de que a litigiosidade interpessoal não tem solução, é possível estabelecer diretrizes sóbrias que busquem solucionar as disputas pontuais e os confrontos específicos, dispensando ao dissenso um aspecto positivo. Acerca do tema, Vasconcelos anota:

O conflito não é algo que deva ser encarado negativamente. É impossível uma relação interpessoal plenamente consensual. Cada pessoa é dotada de uma originalidade única, com experiências e circunstâncias existenciais personalíssimas. Por mais afinidade e afeto que exista em determinada relação interpessoal, algum dissenso, algum conflito estará presente. A consciência do conflito como fenômeno inerente à condição humana é muito importante. Sem essa consciência tendemos a demonizá-lo ou a fazer de conta que não existe. Quando compreendemos a inevitabilidade do conflito, somo capazes de desenvolver soluções autocompositivas. Quando o demonizamos ou não o encaramos com responsabilidade, a tendência é que ele se converta em confronto e violência.

O que geralmente ocorre no conflito processado com enfoque adversarial é a hipertrofia do argumento unilateral, quase não importando o que o outro fala ou escreve. Por isso mesmo, enquanto um se expressa, o outro já prepara uma nova argumentação. Ao identificarem que não estão sendo entendidas, escutadas, lidas, as partes se exaltam e dramatizam, polarizando ainda mais as posições (2012, p. 19-20).

Com efeito, a solução transformadora do conflito reclama o reconhecimento das diferenças e do contorno dos interesses comuns e contraditórios, subjacentes, já que a relação interpessoal está

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calcada em alguma expectativa, valor ou interesse comum. Já restou devidamente demonstrado que a visão tradicional não produz os resultados ambicionados, posto que a eliminação do conflito da vida social é algo que contraria a existência e interação em sociedade. O mesmo pensamento vigora com a premissa de que a paz social só pode ser alcançada, essencialmente, com a erradicação do conflito; ao reverso, a paz é um bem precariamente conquistado por pessoas e sociedades que aprendem a abordar suas desavenças de forma consciente e madura, dispensando um tratamento positivo, em prol do crescimento e amadurecimento dos envolvidos e não como elemento de destruição.

Segundo Foley (2011, p. 246), toda situação conflituosa deve ser analisada como uma oportunidade, na proporção em que possibilita a veiculação de um processo transformador. Ora, os conflitos são detentores de sentidos e, quando compreendidos, as partes neles engajadas têm a possibilidade de desenvolver e transformar a sua vida. Logo, como são elementos constituintes da vida humana, não podem ser concebidos como exceção, mas sim como mecanismos oriundos da coexistência em sociedade que permite o amadurecimento dos partícipes e, por vezes, a alteração da óptica para analisar as situações adversas a que são submetidos. Neste passo, conceber o conflito como uma aberração social é contrariar a própria essência do convívio em sociedade, no qual indivíduos complexos, com entendimentos e posturas variadas e plurais, em convívio contínuo, tendem a apresentar interesses opostos, os quais, inevitavelmente, entram em rota de colisão.

É imperiosa a ressignificação do vocábulo "conflito", adequando-o à realidade contemporânea, de modo que não seja empregado apenas em um sentido negativo, mas sim dotado de aspecto...

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