A Culpabilidade Penal

AutorHidemberg Alves da Frota
CargoAdvogado em Manaus/AM
Páginas14-17

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Enquanto a tipicidade e a antijuridicidade1 veiculam juízos de reprovação sobre o fato, a culpabilidade representa "juízo de reprovação sobre o autor do fato"2, avaliação judicial "que se faz da conduta do agente, concebendo-a como censurável ou incensurável"3.

Se ausente a culpabilidade, não há delito (crime ou contravenção penal4), nem se justifica, por conseguinte, impor-se a sanção penal5. A culpabilidade, tal quais a tipicidade e a antijuridicidade, configura pressuposto da pena, haja vista que esta é conseqüência da patente presença daquelas três no caso concreto6. "A culpabilidade pressupõe o injusto"7, sintetiza Günther Jakobs e, ao mesmo tempo, consigna Claus Roxin não apenas que "toda pena pressupõe culpabilidade"8, como também que "aquilo que limita uma pena é, obviamente, também seu pressuposto"9. Em outros termos, pontifica Cezar Roberto Bitencourt:

"Ora, na medida em que a sanção penal é conseqüência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade são pressupostos da pena, que é a sua conseqüência."10

A infração penal, seja crime, seja contravenção, caracteriza-se pela comprovada prática de fato típico e antijurídico, por agente em relação ao qual recaia juízo de culpabilidade "emitido pela ordem jurídica"11.

A reprovação penal se mostra presente quando incide sobre autor de fato típico e antijurídico, em razão de essa pessoa, por meio de conduta omissiva ou comissiva, ter optado por contrariar o Direito quando podia e devia respeitá-lo12 e o respeitaria, se houvesse agido de forma distinta e ajustada à ordem jurídica13.

Na concepção abraçada pelo finalismo, explica Hans Welzel, a culpabilidade concerne à "reprovabilidade da resolução de vontade"14, porquanto teria o autor "podido adotar, em vez da resolução de vontade antijurídica - tanto se dirigida dolosamente à realização do tipo como se não correspondente à medida mínima de direção final exigida -, uma resolução de vontade conforme a norma"15. Tratase da "capacidade de obrar de outro modo"16, isto é, da "capacidade de adotar uma resolução de vontade diferente, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico"17 - resplandece André Luís Callegari -, considerando, por um lado, o "desenvolvimento ou maturidade da personalidade"18 e, por outra banda, "determinadas condições biopsíquicas que permitam ao sujeito conhecer a licitude ou ilicitude de suas ações ou omissões e agir conforme a esse conhecimento"19.

Sob tal ponto de vista, a culpabilidade penal radica seu cerne no dever jurídico inarredável de que o sujeito ativo do fato típico e antijurídico se eximisse de executá-lo, se, observadas pelo julgador as nuanças do caso concreto, percebe que o réu, na dicção de Luiz Regis Prado, "devia e podia adotar uma resolução de vontade de acordo com o ordenamento jurídico e não uma decisão voluntária ilícita"20.

A pedra de toque da culpabilidade penal reside na exigibilidade de conduta diversa e, por conseguinte, no poder-agir-de-outro-modo, considerados os parâmetros usualmente indicados pela experiência humana21, conjugados com as "circunstâncias concretas do fato, que condicionam seu comportamento [o do autor] ou nele exercem substancial influência"22, a fim de se saber se "o agente era capaz e poderia ter agido concretamente de conformidade com a proibição e determinação contidas no tipo do injusto"23.

Alerta Selma Pereira de Santana: "A reprovação da culpabilidade pressupõe que o autor houvera podido formar sua decisão ilícita de ação, em forma mais correta, adequada à norma, e isso não é no sentido abstrato do que houvera podido fazer um homem qualquer, em lugar do autor, senão, e muito concretamente, de que esse homem, nessa situação, houvera podido formar sua decisão de vontade na forma adequada à norma."24

Antes de prosseguir, cabe um parêntese. Reputando empiricamente indemonstráveis o poder-agir-de-outromodo e o livre-arbítrio (ou liberdade da vontade25), Claus Roxin avulta, em lugar daqueles, respectivamente, o "agir ilícito apesar da idoneidade para ser destinatário de normas"26e "a capacidade de livre autodeterminação"27, que, ao contrário daqueles, seriam acessíveis "à comprovação forense"28 , uma vez que verificáveis por meio de "métodos psicológicos ou psiquiátricos"29. Destaque-se o escólio de Santana:

"Para essa concepção, há que se afirmar a culpabilidade de um indivíduo quando ele, em razão de sua constituição mental e psíquica, estava, ao tempo da ocorrência, disponível para o apelo da norma, isto é, quando tinha ele condições de decidir-se pelo comportamento orientado no sentido da norma."30

Para Roxin, infere-se, bastaria indagar se a capacidade de autodeterminação do agente teria lhe facultado condições psíquicas suficientes para se estimular a se pautar pelo dever-ser emanado da disposição normativa que acabou sendo violada. Posto de outra forma, a culpabilidade não estaria alicerçada na constatação de que o autor tinha "à sua disposição várias modalidades de ação"31, e, sim, na percepção de que o agente possuía a faculdade psíquica de se motivar ante o teor do comando normativo. Reconhece Juarez Tavares que a idoneidade para ser destinatário das normas aventada por Roxin, em verdade, encarta "conclusão de um juízo sobre a capacidade de agir do sujeito em face da norma, o que, no fundo, pressupõe uma liberdade de vontade, desde que motivada pela própria norma"32. Esse questionamento acerca da plausibilidade do efeito motivacional da norma sobre a psique do autor significa perquirir, em essência, se havia condições psíquicas para o indivíduo se adequar à conduta incensada pela ordem jurídica, o que retorna o cerne da discussão para o poder-agir-deoutro-modo, agora voltado à "acessibilidade normativa"33, "dirigibilidade normativa"34 ou à eficácia, na circunstância concreta, do "apelo normativo"35, a qual, a fim de ser aferida, requer, a nosso juízo, a prévia existência do livre-alvedrio - implica o ser humano se encontrar, à época, apto, do ponto de vista psíquico, a administrar a própria conduta, sem o que não há, desnecessário frisar, "permeabilidade [psíquica] ao apelo normativo"36, nem capacidade de autodeterminação. Ao se "verificar se, nas circunstâncias em que agiu, o agente poderia conformar sua personalidade de acordo com o determinado pelo sistema jurídico-penal (dirigibilidade normativa)"37, realiza-se exame minudente acerca da possibilidade do autor ter obrado de forma diversa (Jorge de Figueiredo Dias considera a "permeabilidade do agente ao apelo normativo"38 outra forma de se referir ao "poder de agir de outra maneira na situação"39). Tal alternativa doutrinária contemporânea (lastreada na idoneidade para ser destinatário das normas) ao tradicional conceito de poderagir-de-outro-modo, em realidade, não resulta na eliminação deste, e, sim, na salutar tendência dogmática atual de se incentivar que a aferição de culpabilidade se aproxime mais Page 15 da realidade fática da circunstância concreta (tendo em conta fatores exógenos e condicionamentos psíquicos a influenciarem, à época, o autor), distanciando-se do idealizado ser humano médio como parâmetro comparativo com o caso concreto40. Por isso, encerramos este parêntese vislumbrando na formulação de Roxin o enfoque de mais uma faceta inerente ao poder-agir-de-outro-modo que deve ser analisada pelo julgador, ao questionar, no caso concreto, se podia o réu administrar a si mesmo em direção a comportamento lícito - apreciação, se necessário, municiada de avaliações técnicas de profissionais da Psicologia ou da Psiquiatria.

Isso posto, saliente-se, a propósito, que o juízo de reprovação penal alcança apenas os imputáveis, aqueles, nas palavras de Gonzalo Quintero Olivares, "dotados de capacidade para orientar livremente seus atos de acordo com o conhecimento da significação destes"41. Em concepção mais elaborada, a imputabilidade expressa "a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde pelos seus atos)"42, informa o magistério de Prado, que arremata: "Essa capacidade possui, logo, dois aspectos: cognoscitivo ou intelectivo (capacidade de compreender a ilicitude do fato); e volitivo ou de determinação da vontade (atuar conforme essa compreensão)"43.

A possibilidade de se portar em consonância com o Direito implica a possibilidade de conhecimento prévio da antijuridicidade (do caráter ilícito da conduta), é dizer, importa se evidenciar presente a potencial consciência da ilicitude44, resultado da...

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