Culpabilidade, Modo de Ser e Medida de Pena

AutorAntonio Carlos Santoro Filho
Páginas15-18

Antonio Carlos Santoro Filho: Juiz de Direito em São Paulo. Pós-graduado em Direito Penal pela Escola Paulista de Magistratura (EPM). antoniocarlossantorofilho@uol.com.br

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Hoje está praticamente pacificado na doutrina, nas legislações democráticas e na jurisprudência que o único campo de atuação do Direito penal é o do “comportamento humano”. Os sentimentos, assim, apenas quando ligados aos comportamentos podem ter relevância.

O Direito, desse modo, não pretende “moldar moralmente o homem”, transformá-lo verdadeiramente. Basta-lhe, para ser considerado eficiente, que logre alterar – ou evitar – as condutas humanas socialmente desajustadas e modificar – ou controlar – os indivíduos no que se refere às suas condutas para com os demais.

Para o Direito, portanto, não importa se o homem em seu plano interno, no seu “querer”, na sua imaginação e pensamentos seja, por exemplo, um “homicida”. O que lhe interessa – e essa é a sua função precípua – é que tais pensamentos ou “vontades” não se concretizem de fato; e, se se concretizarem, a sanção terá por finalidade ressaltar que o “bem jurídico” atingido continua a manter a sua posição de valor socialmente relevante.

Logo, o que se passa somente no mundo interior de cada ser humano, o que está reservado ao âmbito da alma ou do espírito e não se reflete nas relações sociais não é atingido pelo Direito – que não é apto e nem pretende intervenção desta natureza.

Como já sustentava Samuel Pufendorf, lembrado por Artur Kaufmann, os deveres para com Deus e para com a bondade só interessam, respectivamente, à religião e à moral. Os deveres jurídicos, por sua vez, que resultam da razão, o são para com a sociedade e independem da religião e da moral1 .

Conclui-se, pois, que se o Direito e a norma penal têm por único referencial a conduta humana, somente esta pode ser o fundamento do juízo de culpabilidade, e não o caráter do homem ou a sua periculosidade latente.

O juízo de culpabilidade tem como objeto fundamental, pois, determinado ato humano, e não o caráter ou conduta de vida da pessoa.

A adoção da culpabilidade pelo ato, todavia, não implica, como parecem querer muitos em nosso tempo, a completa dessubjetivação da responsabilidade penal e a despersonalização do delito; ou que a atitude interna do agente em relação ao bem jurídico, assim como os demais caracteres subjetivos – em suma, a sua personalidade2 e opções efetivadas, isto é, o uso que fez de sua liberdade3 –, na concreção do fato, não tenham qualquer relevância; ao contrário, trata-se, no juízo de culpabilidade, do dado que permite diferenciar e fixar o seu grau e, em consequência, aplicar a pena com observância ao princípio da proporcionalidade.

A pessoa humana – como sustenta Edith Stein – é um ser corporal-anímico que “habita” um eu consciente de si mesmo que é livre e que pode configurar tanto o seu corpo como seu espírito. Sua estrutura essencial submete a uma formalização espiritual, tanto a sua autoconfiguração voluntária, como os atos pontuais de sua vida e o seu próprio ser permanente4 .

A culpabilidade, pois, não se esgota em um juízo sobre o ato – embora seja este, repita-se, sempre a sua referência principal e pressuposto inafastável –, mas envolve, também, a valoração da posição assumida pela pessoa em relação aos outros, de sua autocolocação na vivência social, ou seja, do sentido que confere – ou conferiu – o indivíduo à própria existência5 .

O injusto penal, nestas condições, constitui uma revelação da construção que a pessoa fez de si própria, das escolhas livres, conscientes e intencionais que efetivou para si e em relação aos demais e pelas quais é responsável; em síntese, da elaboração que realizou do próprio destino e de seu “ser no mundo”, devendo ser valorado sob essa complexidade. O ser da pessoa é composto pelo que ela é e como é. A coincidência entre o ser de um ente, e seu aparecer, consubstancia-se em como aparece para nós, de forma que este aparecer compreende-se como um vir a ser na cotidianidade da existência. O ser somente pode ser compreendido, portanto, na existência humana, na coexistência em seus modos de ser no mundo6 .

Com efeito, o (f)ato-crime doloso é um fenômeno social7 que se imputa – e por isso pertence – a determinado sujeito como obra sua, pois produzido como decorrência de sua vontade consciente, em frustração àPage 16 expectativa de observância da norma. Estes, em síntese, os pressupostos subjetivos que fundamentam a imposição de uma sanção penal.

No “fenômeno-crime” o que se dá a observar não é apenas o “fato”, mas também a personalidade8 – ou ao menos um de seus lados, uma de suas facetas – de seu agente. Realmente, se o conhecimento, como assevera Edith Stein, é uma captação espiritual de um ente, é lícito dizer que conhecemos o modo de ser próprio de um homem e que este modo de ser se mostra a nós mediante as múltiplas formas expressivas pelas quais o interior – personalidade – se exterioriza: comportamentos9 . A análise da existência, que se constitui de escolhas concretas, deixa transparecer o sentido do ser10 . Um determinado “modo de ser”, pois, permite uma investigação e conclusões ontológicas, na medida em que mostra ao mundo o próprio ser que o produz11 .

A culpabilidade, por isso, tendo por objeto o fenômeno, constitui um juízo de valor não somente sobre o próprio ato, em si mesmo considerado e “isolado”, mas ainda em relação ao que se revelou da personalidade, da opção existencial do espírito humano que o produziu.

Em resumo: o direito penal que pretenda realizar justiça não pode ser um puro direito penal do fato, pois os fatos, isolados de seu contexto e descolados de suas circunstâncias circundantes, não possibilitam implicações valorativas subjetivas; também não pode ser um mero direito penal de autor – cujos efeitos danosos à liberdade foram inequivocamente comprovados pela história –, pois a moral, enquanto circunscrita ao plano pessoal e sem capacidade de causar prejuízos a outrem, pertence apenas a cada um. Propugnamos, portanto, um direito penal do ato, que é constituído pelo fato, mas também por seu autor, uma vez que o ato pertence a quem o produz e é expressão de sua personalidade. O ato supera o fato, pois é o fato somado ao seu autor e impregnado pelas características pessoais deste. Logo, na apreciação do ato, valora-se o fato, o acontecimento – aspecto objetivo –, mas também o seu contexto ético e seu agente – aspecto subjetivo.

A gradação da pena, portanto, além das circunstâncias objetivas...

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