A Culpabilidade Diferenciada nos Crimes Militares

AutorFrederico Magno de Melo Veras
Páginas59-85

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Até aqui preparei terreno para começar a demonstrar qual a diferença entre a culpabilidade nos crimes comuns e nos crimes propriamente militares. Agora respondo a esta questão afirmando que a diferença existente ampara-se no forte conteúdo ético-militar dos delitos propriamente militares, num juízo de censurabilidade saturado de valores militares, com um aumento considerável da exigibilidade de conduta diversa.

Para visualização daquilo que afirmei, verifique-se que:

I - o julgamento do crime militar é feito por um escabinato;

II - existe uma forte co-relação entre o crime propriamente militar e as transgressões militares sob o aspecto fático, sendo aquele considerado como uma transgressão militar em um grau elevado;

III - os tipos penais relativos aos crimes militares próprios são, em sua grande maioria, neutros em termos de sociedade civil, só tendo relevância direta no âmbito da sociedade militar;

IV - a existência de normas de justificação e de exclusão de ilicitude que lhes são próprias, bem como veda-

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ções quanto à aplicabilidade de normas de justificação válidas para o Direito Penal comum;

V - a pena tem como finalidade primordial a prevenção geral negativa;

VI - os militares são diferentemente punidos entre si, de acordo com o grau de formação militar, bem como em consonância com o seu grau hierárquico, sendo o juízo de censura penal maior quando o agente é um oficial.

Passo a examinar cada um dos itens acima, com atenção voltada à função militar, às expectativas constitucionais com relação às Forças Armadas e às expectativas da socie-dade civil (ou à falta delas), bem como à forma de interação do subsistema militar consigo mesmo51.

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7.1. Os Órgãos da Justiça Militar como Indicativos de um Julgamento Orientado por Valores Inerentes à Carreira D’armas

Antes de iniciar este item, quero deixar em suspenso uma possível refutação ao seu enunciado, qual seja, que o órgão julgador não infiui na culpabilidade penal, apenas a pondera para proceder ao julgamento e eventual aplicação da pena. Que o órgão judicial faz parte dos domínios do Direito Processual Penal52, sendo que a conduta a ser julgada e a culpa a ela imanente são pretéritas, carecendo apenas de ser auferida e avaliada. E que apenas num conceito normativo de culpabilidade, no qual cresce em importância um juízo de reprovação, é que importaria para o Direito Penal saber quem julgará o crime.

Deixo esta questão lançada, e irei retornar a ela após explicar com brevidade como funcionam as Justiças Milita-

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res do Brasil e de Portugal, com especial atenção quanto à forma pela qual a Lei regula a participação de militares no escabinato53responsável pelo julgamento dos crimes militares.

Brasil e Portugal passam por momentos distintos no que diz respeito às suas respectivas Justiças Militares. O Brasil passa por um momento de expansão, enquanto em Portugal se vive um momento de contração54.

No Brasil, existem Justiças Militares distintas. A Justiça Militar da União, à qual compete processar e julgar os crimes militares de natureza federal, qualquer que seja o agente (art. 124, CF, 88), ressalvado o foro privilegiado dos titulares de cargos públicos, e as Justiças Militares Estaduais, sendo que cada estado da federação possui sua própria Justiça Militar, estando incumbidas de julgar os crimes militares cometidos por policiais militares e integrantes dos corpos de bombeiros militares (art. 125, § 4º), não havendo o julgamento de crimes cometidos por civis.

A simples descrição mais detalhada de como estão organizadas e funcionam as diferentes Justiças Militares no Brasil já daria azo a um outro livro, porém ressalto cinco pontos: 1- a Justiça Militar da União (JMU) utiliza integralmente as disposições do Código Penal Militar (CPM) e do Código de Processo Penal Militar (CPPM), enquanto

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as Justiças Militares Estaduais só as aplicam parcialmente; 2- atuam junto aos órgãos da JMU os membros do Ministério Público Militar, sendo este um dos ramos do Ministério Público da União, enquanto nas Justiças Militares Estaduais ocorre a designação de membros do Ministério Público Estadual; 3) os juízes-auditores da JMU (magistrados togados) são todos especializados no Direito Militar, enquanto os agora chamados juízes de direito do juízo militar (designação dada após a EC n. 45/04) podem ser especialmente recrutados por meio de concurso próprio, ou fazer parte da justiça comum, sendo temporariamente designados para o Juízo Militar; 4) o órgão de cúpula da JMU é o Superior Tribunal Militar (STM), cabendo recurso das decisões deste somente para o Supremo Tribunal Federal (com funções de Corte Constitucional, mas não exclusivamente), enquanto nas Justiças Militares pode existir um Tribunal Militar (São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais) ou haver recurso para o Tribunal de Justiça Estadual; 5) a JMU possui uma Lei de Organização Judiciária própria, a qual possui alguns dispositivos de índole processual que, por se tratar de lei federal ordinária, se integraram ao CPPM, enquanto as Justiças Militares Estaduais são organizadas de acordo com as respectivas Leis de Organização Judiciária Estaduais, as quais, por não serem leis ordinárias federais, são hierarquicamente inferiores ao CPPM55.

Em razão da recente Emenda Constitucional n. 45/0456, as Justiças Militares Estaduais tiveram a sua competência

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ampliada, pois, além da tradicional competência penal, para o julgamento de crimes militares cometidos por integrantes das Polícias Militares, passaram a ser competentes para o julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares (art. 125, § 4º, da CF).

Na seqüência da reforma do Poder Judiciário, acreditase que a competência da JMU também será ampliada, passando a exercer o "controle jurisdicional sobre as punições disciplinares aplicadas aos membros das Forças Armadas"57.

No Brasil, além da competência criminal e da recém-adquirida competência em matéria cível, os tribunais militares também funcionam como uma espécie de tribunal administrativo, no que respeita à perda do posto e da patente do oficial considerado indigno para o oficialato, numa ação de formato judicialiforme.

Os Conselhos de Justiça responsáveis pelo julgamento dos crimes militares, quer na esfera federal, quer na esfera estadual, sempre são compostos por quatro militares e um juiz-auditor, possuindo os votos o mesmo peso. Embora o juiz-auditor seja o relator do processo, sendo seu voto habitualmente o voto condutor, é evidente o peso dos votos dos militares para a formação do veredicto.

Em Portugal, o que se verifica é uma retração da Justiça Militar, com a extinção de seus órgãos próprios, bem

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como com a alteração das regras atinentes ao escabinato, que passou a reger-se pelo artigo 116.º, do Código de Justiça Militar58.

Com o novo CJM59, o número de tipos penais diminuiu, não obstante uma inclusão de tipos penais diretamente ligada à adesão portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Inter-nacional, adesão esta que também gerou a Lei n. 31/2004 de 22 de Julho. Também houve uma diminuição quantitativa da participação dos militares nos diversos níveis dos escabinatos julgadores.

Sendo as alterações trazidas pelo CJM ainda muito recentes, não se pode até o momento auferir quais serão as suas repercussões no que diz respeito à melhor proteção da hierarquia e da disciplina no seio dos quartéis, sendo certo que a menor infiuência no órgão julgador da participação de militares deverá fazer preponderar no julgamento questões de natureza técnico-jurídicas.

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Retomando o tema deste item, pode-se verificar que a presença de no mínimo um militar (julgamento na primeira instância de crime militar em Portugal) no julgamento de crimes militares pretende garantir que uma visão própria das Forças Armadas integrará o somatório das infiuências determinantes do veredicto judicial. Naturalmente, tratando-se de crime propriamente militar, a motivação do juiz militar não será idêntica à dos juízes togados, pois aquele estará mais atento às repercussões do ato na sociedade militar, enquanto estes prestarão um grau maior de atenção à culpabilidade do agente como a razão e limite da aplicação da pena.

Dessa forma, a refutação da crítica adiantada no começo deste item, de que o órgão julgador não infiuencia nos critérios de auferição da culpabilidade do agente e, portanto, no próprio significado da culpabilidade no âmbito do julgamento dos crimes próprios militares, vai por terra, ao constatar-se que, no órgão julgador, juízes leigos trazem ao julgamento um conjunto de valores comuns ao argüido que validarão seu julgamento quanto à culpabilidade deste. No item seguinte, voltarei a este argumento, sendo importando ressaltar que no Brasil, como o peso dos votos militares nos Conselhos de Justiça, quatro votos de juízes militares e um do juiz togado ou, em segunda instância, dez votos de ministros militares, contra cinco votos de juízes civis, torna-se de evidência solar a importância no julgamento de projeções valorativas militares que determinam a essência funcional da culpa.

7.2. O Crime Propriamente Militar e o Direito Disciplinar Militar

Evidentemente que as transgressões militares não fazem parte do Direito Penal Militar, mas sim do Direito Penal

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Disciplinar, dessa forma, poder-se-ia de pronto afirmar que de nada adianta seu exame para um estudo da verificação da culpabilidade nos crimes propriamente militares.

Na verdade, não é assim, pois se é...

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