Culpabilidade

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas383-391

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14.1. Considerações preliminares

As palavras culpa e culpado, obtempera Mirabete, têm sentido léxico e comum de indicar que uma pessoa é responsável por uma falta, uma transgressão, ou seja, por ter praticado um ato condenável836. Essas expressões, de que deriva culpabilidade, são até mesmo empregadas pelas crianças, em seu vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma travessura837.

Não difere desse enunciado a significação jurídica de culpabilidade, pois nullum crimen sine culpa.

Como salienta Graf Zu Dohna, incomparável professor da Universidade de Bonn, chamamos culpável a ação que é obra de um comportamento psíquico que merece reprovação838.

A culpabilidade, acentua Francisco de Assis Toledo, por ser basicamente um juízo de censura, pressupõe a existência de um ilícito penal, pois não é pensável um juízo de reprovação endereçado ao comportamento lícito, reto. Censura-se tão só aquilo que se fez em antagonismo com o comando de alguma norma, isto é, a conduta típica e antijurídica. Caracterizado o injusto penal, a presença da culpabilidade - ressalta Maurach, catedrático da Universidade de Munique - fecha, ou seja, remata (abschlisst) a estrutura do crime839.

Crime, como já realçado, é a conduta que reúne os atributos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, a ele sendo ligada, como consequência ou resposta jurídica, a sanção penal.

Nos perímetros da tipicidade e da antijuridicidade o delito é examinado sob ótica essencialmente objetiva, sem que isso impeça singela e perfunctória avaliação subjetiva na quadra da ação típica (v. n. 3.1).

Em termos de culpabilidade, porém, o vislumbre do comportamento humano obtém descortino eminentemente subjetivo, pois agora se deve ignorar a realidade

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fenomênica e analisar como o sujeito ativo se posicionou, pelo seu conhecimento e querer, diante do episódio.

A culpabilidade, segundo Engisch, somente existe quando relacionada corretamente a alguém e a algo840.

Nos domínios da culpabilidade não basta a realização externa do fato criminoso. A esta realização externa deve corresponder um ato interno de vontade que faça do agente a causa moral do acontecimento841, para estabelecer-se entre a pessoa e o fato a devida relação psicológica. Sem esta, há mera infelicitas facti, caso fortuito estranho à consideração penal.

A ciência penal despreza, por via de consequência, a chamada responsabilidade objetiva, decorrente da pura causação do fenômeno material. A imputatio juris, destarte, que substancialmente difere da singela imputatio facti (v. n. 6.1), necessariamente subentende uma relação psicológica do sujeito ativo com o acontecimento penalmente relevante. Não mais há a robustez que em tempos de antanho se conferia ao brocardo qui in re illicita versatur etiam pro casu tenetur. A responsabilidade a título meramente objetivo, observou Seuffert, representa um traço de primitivismo. É um resquício da fase objetiva do direito penal, em que só se cuidava do lado material ou sensível do crime842. Assim, distantes se fazem as eras em que, de conformidade com as leis de Dracon, poderiam ser culpáveis, indiferentemente, o homem, o animal, a árvore, a estátua, a pedra, a madeira ou o cadáver que tivessem, por acidente, causado a morte de alguém. Pausanias então explicava que se uma estátua, um vaso ou uma coluna, ao cair, matasse um homem, deveria formar-se um processo imediatamente contra a estátua, a coluna ou o vaso homicida, condenando-o à destruição843. Pertence aos tempos da barbárie e a épocas primitivas, aponta Battaglini, a punição das coisas inanimadas e dos animais844. Ainda conforme o princípio do versari in re illicita, ilustram Zaffaroni e Pierangeli, o autor de um furto deveria ser responsabilizado pela morte do dono do negócio ocorrida em consequência de uma parada cardíaca sofrida ao tomar conhecimento do fato delituoso em seu estabelecimento; o marido que abandona o lar deveria ser responsabilizado pelo suicídio da mulher; o que furta um extintor, pelo dano causado por um incêndio que sobrevém um ano depois; o que se apodera do combustível de um veículo, pelo roubo de que é vítima o seu dono quando procura abastecimento845, situações, como é evidente, que contrastariam clamorosamente com o princípio nullum crimen sine culpa, violando fundamental dogma do direito penal moderno.

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O crime é a realização do tipo e esta deve ocorrer não só na objetividade do resultado, mas, ainda, no mundo subjetivo da representação do agente846.

Sendo o crime obra humana, é indispensável estabelecer entre o fato objetivamente considerado e a pessoa que o cometeu um liame subjetivo que a vincule ao acontecimento. Há, pois, que se perscrutar do coeficiente subjetivo da culpabilidade, eis que, anota Frederico Marques, é esta que liga o fato típico e antijurídico ao homem, estabelecendo o nexo necessário entre o conteúdo objetivo da conduta ilícita e o querer interno do agente847.

O aspecto objetivo do crime implica a sua análise como um acontecimento ou episódio, id est, a sua avaliação exterior. Resulta de exame relativo a simples constatação de fato.

Já na apreciação subjetiva desdenha-se o episódio em si, como entidade objetiva, para constituir objeto de atenção a forma como o sujeito ativo se colocou diante dele, por intermédio de seu conhecimento e desejo.

A constatação objetiva se revela pelo quadro exterior do acontecimento. A subjetiva se dessume pelo lado interno do agente, pelo jeito como visualizou o fato e a ele se ligou pelo psiquismo.

Um episódio, objetivamente idêntico, pode comportar variações subjetivas de interpretação, conhecimento e querer, de modo a levar a diferentes implicações penais

(v. n. 16.4.1). Como ilustra Odin Americano, se alguém se assenta à mesa e escreve, o que o motivaria? O comportamento é o mesmo. Todavia, um compromisso com o livreiro pode ser a causa remota dessa vontade. O prazer de escrever pode ser o preço da necessidade de demonstrar o conhecimento sobre o assunto que se discorre, como pode ser a necessidade de conferir conhecimentos ou mesmo o prazer espiritual de ver as ideias ordenadas ou o estímulo de propagar os conhecimentos que possui. Há, portanto, não se pode negar, uma série infinita de motivos a atuar sobre o espírito e despertar a vontade. Esta é, apenas, a roda de uma engrenagem que se move impelida por tantas outras e que, ordenadas, transformam a inércia em movimento para as mais surpreendentes direções848.

Sempre é indispensável investigar a relação psicológica da pessoa com a realidade objetiva que defrontou.

Desta sorte, na seara da culpabilidade, o fato penalmente relevante deve ser descartado como motivo de aferição, porque já examinado à luz da tipicidade e da anti-juridicidade, para despontar como ponto de ponderação, exclusivamente, a pessoa do sujeito ativo, envolvida no episódio. Imperioso, agora, é esquecer o fato e examinar a posição do agente, como pessoa, diante do acontecimento, pela impressão e conhecimento que teve a respeito.

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Convém esclarecer, sob imagem figurada.

Digamos que alguém tenha diante de si um giz branco. O que quer que suponha, imagine ou pense a respeito dessa peça jamais terá o condão de modificar a essência da realidade, a natureza do objeto. Quer saiba ou não o tal alguém tratar-se de um giz branco, quer se aperceba ou não de sua presença, quer pense, pela distância que o separa da coisa, tratar-se de cigarro ou de qualquer outro objeto cilíndrico de tonalidade clara, é translúcido que, como quer que se posicione diante do objeto, seu pensamento não irá desconstituir a realidade. Como quer que visualize o giz branco, ele continuará a ser o que é, pouco importando o conhecimento, a percepção e a impressão que essa...

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