O não cuidado do estado com o bem-estar na sociedade civil

AutorCecilia Pires
CargoProfessora e pesquisadora na área de Filosofia Política no Programa de Pós-Graduação em Direito (Escola de Direito da IMED ? Passo Fundo)
Páginas23-29

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1. Os marcos da argumentação na fala da filosofia política: a tese do contrato

O tema do Estado está situado no contexto da filosofia política como uma questão de fundo, mais do que um problema metodológico. Trata-se de construir um caminho de reflexão acerca do gerenciamento que o Estado realiza sobre os interesses da sociedade, regulando a vida dos cidadãos.

O marco da abordagem teóricohermenêutica da filosofia política diferencia-se da ciência política, pois não lida com o empírico, com o verificável e o quantificável. Não há um viés positivista no pensar a política, a partir do Estado-gerente, na medida em que, na reflexão filosófica, não se apresentam dados de estatísticas ou desempenhos de governabilidade.

A lógica, a partir da qual a filo-sofia política opera, se orienta para o entendimento da legitimação do poder e sobre as relações que se estabelecem com as demais áreas do saber acerca do poder. Há, pois, uma reflexão sobre o fazer político em sociedade, momento em que aparecem as tensões entre indivíduos e sociedade, entre liberdade individual e ação coletiva.

Pelas razões apresentadas, é possível pensar no poder como elemento dinâmico na questão do Estado. Aí se envolvem diferentes pontos de vista, desde o modelo de uma república perfeita, passando pela análise dos que apresentam critérios de legitimidade do poder, como os contratualistas modernos. A obrigação de obedecer ao poder constituído é fundamental nessa tradição, momento em que se enfrentam a razão individual e a razão de Estado.

Esta abordagem crítica da questão do Estado na sua relação com os indivíduos é o momento epistemológico da filosofia política quase como um ultrapassar do sistema de códigos estabelecido no corpus jurídico. Na realidade, a dimensão da política interessa à filosofia como uma das características do humano, uma vez que “a política se dá entre os homens”, nas palavras de H. Arendt (2002). Se deixasse de existir a política, deixaria de existir a própria relação social entre os sujeitos.

A política ocorre entre os humanos como experiência da liber-dade. O sentido, pois, da política é a liberdade. Os homens se organizam politicamente para sair do caos ou a partir do caos absoluto produzido pelas diferenças. Em todo caso, para entender o que é política e entender sua tarefa, fazse necessário considerar a pluralidade dos homens, a convivência entre os diferentes e os laços de parentesco que dificultam o entendimento da pluralidade.

Mas a pergunta sobre o sentido da política toma outra ênfase hoje: “tem a política algum sentido ainda” (Arendt 2002)? Esta questão, formulada por Hannah Arendt, no século XX, demonstra a insatisfação pela prática da política, pelo modo como ela foi realizada no convívio dos humanos, como

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ausência ética. Da pergunta o que é politica decorre outra acerca do sentido da política.

Na fala da autora:
“A pergunta atual surge a partir de experiências bem reais que se teve com a política, ela se inflama com a desgraça que a política causou em nosso século, e na maior desgraça que ameaça resultar delas. Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? (Arendt, 2002: 38)”

A compreensão arendtiana dos procedimentos expansionistas da antiga URSS e do totalitarismo nazista demonstra sua tese de que houve uma invenção totalitária, vivida no âmago de um Estado forte, que aniquilou as subjetividades.

A forma como a política e o poder político foram exercidos atingiu a liberdade dos sujeitos, produzindo um afastamento dos princípios da liberdade com a efetividade das ações políticas autoritárias. Na realidade, ações são necessárias para que se produzam mudanças, na medida em que o movimento próprio da ação engendra o novo. Mas há ambivalências nessas mudanças, que podem afetar a liberdade própria dos sujeitos.

A ação é o nosso fazer, além do trabalho. Ela é a dinâmica da nossa vida. Agimos como seres singulares e plurais, e agimos porque nossa liberdade sustenta nossa ação.

Hannah Arendt analisa em Crises da República:

“Somos livres para reformar o mundo e começar algo novo sobre ele. Sem a liberdade mental de negar ou afirmar a existência, de dizer “sim’ ou “não”, – não apenas a afirmações ou proposições para expressar concordância e discordância, aos nossos órgãos de percepção e conhecimento – nenhuma ação seria possível, e ação é exatamente a substância de que é feita a política” (Arendt, 1999: 15).

Essa é a consideração forte entre verdade e política, nas instâncias da ação dos sujeitos. O que esteve em jogo, portanto, foi a continuidade da vida nessas experiências autoritárias e totalitárias. O poder de Estado se impôs de modo ameaçador, algumas vezes. São as obliquidades da razão se expressando entre os humanos. Uma das obliquidades da racionalidade humana é o poder.

Em Thomas Hobbes isto se torna mais enfático, quando ele estabelece a necessidade dos ho-mens estarem disciplinadamente sob um comando, regido pela governabilidade do soberano, que é a representação do Estado. Este é, por excelência, o símbolo do poder, na visão hobbesiana.

É útil, pois, que o sujeito se adapte ao que governa, para sobreviver. A garantia de sua vida está vinculada à submissão ao Estado. Para o autor de o Leviatã, esta é a condição dos súditos na República: entregar a liberdade pessoal ao soberano, para conseguir a própria proteção. Nisto consiste o pacto1 – o conceito de poder aparece como uma totalidade fechada na efetividade do Estado, representado pelo soberano.

Os homens construíram o contrato como um dado da cultura política, quando se reuniram para pensar e experimentar a convivência organizada. Esta tese está presente nas análises dos contratualistas, ainda que esses aportes dos teóricos apresentem múltiplos e conflitantes argumentos acerca da organização social e política da humanidade.

Na tradição contratualista, a ideia de soberania está sobreposta ao valor da autonomia dos sujeitos. O soberano é o governante, o rei, aquele com o qual os indivíduos contrataram a governabilidade. O Estado é o artefato jurídico-político que avalia esse contrato, que é imprescindível para a sobrevivência, pois sem ele se instaura o estado de guerra entre os indivíduos. Os pactos, portanto, dizem respeito somente a coisas possíveis e futuras. Ninguém por pacto se obriga ao impossível, assevera Hobbes2. O Estado, na figura do príncipe ou do soberano, torna-se o eixo em torno do qual a sociedade civil se organiza e experimenta múltiplas variações dessa gestão governamental.

O compromisso de proteger e cuidar os indivíduos está pactuado, mas o que se evidencia é o não cuidado – ou certo descaso – do Estado com a sociedade civil, nas suas necessidades e reivindicações.

2. A dissonância entre regulação e não cuidado

O Estado simboliza o locus politicus das relações de poder, na sociedade civil organizada. Como tutor da vida social, faz sua presença acontecer em todos os espaços geográficos e em todos os níveis das organizações civis, políticas, econômicas, educacionais, culturais e religiosas.

Observam-se, na atualidade, novas características do...

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