Cuba em transformação: regime político e o contexto da 'atualização modelo do econômico e social'

AutorJulian Araujo Brito
CargoCientista Social, Aluno do curso de mestrado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ); bolsista do CNPq
Páginas109-124

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1 Introdução

Novamente, a atenção mundial se voltou à Cuba. Depois do afastamento de Fidel Castro e a ascensão de Raul Castro à presidência do país (que assume provisoriamente em 2006 e em 2008 é eleito presidente), agora o alvo é o processo reformista em curso, iniciado em 2010, denominado de “atualização do modelo econômico e social”, ou simplesmente “atualização do socialismo”.

Este aparece inicialmente como uma reforma dos mecanismos de direção centralizada da economia, das relações de propriedade e sua gestão, da política social e, portanto, constituem uma tentativa de reforma econômica mais ampla do sistema social cubano. O objetivo das mudanças propostas é aumentar a produção e a eficiência da economia nacional, retirando possíveis travas burocráticas que estariam impedindo o desenvolvimento das forças produtivas e, com isso, assegurar a sustentabilidade e a preservação do sistema social, garantindo um maior equilíbrio entre produção e consumo social.

Este programa reformista está contido no documento oficial Lineamientos de la política económica y social del Partido y la Revolución1 e, portanto, constitui a base para a “atualização do modelo econômico cubano”. Inicialmente, no final de 2010, o documento foi levado à discussão junto à população e posteriormente debatido e aprovado no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC) em 2011, o qual dedicou-se fundamentalmente (e estrategicamente) a temas econômicos. Por sua vez, este mesmo Congresso acordou que seria convocada uma Conferência Nacional do PCC, em que se discutiria temas diretamente políticos destinados a revisar o funcionamento interno do partido e a “atualizar” métodos políticos e concepções dos seus quadros e militantes em consonância com a tarefa prioritária de implementação das reformulações ao modelo econômico (CASTRO, 2011). E, assim, em janeiro de 2012, realizou-se em Havana a 1ª Conferência Nacional do PCC.

Basicamente, a plataforma econômica reformista se articula em dois eixos2. Por um lado, segundo os dirigentes cubanos, não se abre mão do conteúdo socialista do sistema, que se expressa no predomínio da propriedade coletiva dos meios de produção (isto é, a manutenção da maioria das empresas estatais e cooperativas), no predomínio do planejamento central sobre o mercado como forma de regulação da atividade econômica, e da vigência do princípio socialista de distribuição: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo seu trabalho.” Soma-se a isso a observação de que o socialismo não significa igualitarismo, senão igualdade de direitos e oportunidades para todos os cidadãos. Nas palavras de Raul Castro, as modificações visam alcançar uma sociedade socialista próspera e sustentável, menos igualitária, porém, mais justa (CASTRO, 2013).

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Por outro lado, uma mudança importante é o reconhecimento do mercado enquanto um mecanismo de alocação que deverá ser levado em conta pela direção da economia (a planificação centralizada), respeitando suas dinâmicas de funcionamento e ao mesmo tempo buscando controlá-lo. A partir daí, busca-se criar um setor produtivo não estatal mais amplo e efetivo, especialmente de cooperativas, investimento estrangeiro e pequenas empresas privadas, comandados por trabalhadores por “conta própria” (autônomos), arrendatários e usufrutuários (forma de gestão privada da propriedade estatal, inclusive na agricultura) e pequenos empresários, aos quais será permitida a contratação de força de trabalho limitada, mas não a concentração da propriedade. No entanto, este setor deverá conviver com o setor estatal ainda majoritário, onde as empresas estatais devem passar por readequações organizativas visando alcançar maiores níveis de eficiência econômica, competitividade, bem como maior autonomia de gestão mediante a descentralização das decisões.

Nestes termos, as modificações propostas visam a retração de funções econômicas diretas sob responsabilidade do Estado, cujo fundamento estaria na ideia de que uma sociedade em transição ao socialismo, nas condições contemporâneas, devem conviver diferentes formas de propriedade e de gestão e, portanto, não faz sentido que o Estado seja o proprietário de pequenos serviços básicos — como salões de beleza, cafés, lanchonetes, sapatarias, lavanderias — prestados até então com pouca qualidade e eficiência, mas que se concentre em ramos e atividades econômicas estratégicas e de interesse nacional.

Consequentemente, se reconhece que o mecanismo de mercado deverá atuar sobre estes novos empreendimentos (inclusive empresas estatais), sendo que alguns deles deverão vender uma quota ao Estado e, posteriormente, poderão comercializar livremente no mercado. Sob o setor não estatal deverá atuar um tipo de planificação indireta, mediante mecanismos de política econômica.

Como antecedentes deste processo de mudanças poderíamos chamar atenção de três aspectos importantes do contexto político do país, que emergiram nas duas últimas décadas. Em primeiro lugar, a emergência de um discurso oficial crítico, especialmente de Raul Castro que, ao reconhecer os problemas e as falhas do sistema, passou a incentivar uma ampla discussão na sociedade (“dentro dos limites do socialismo”), falando em “mudanças estruturais e de conceitos onde forem necessárias”, como expressou em discurso em comemoração aos 54 anos do assalto ao quartel Moncada em 2007 (CASTRO, 2007).

Em boa medida, este tom crítico foi antecipado por um discurso de Fidel Castro em 2005 na Universidade de Havana em que atentou para a possibilidade de reversão do processo revolucionário por erros internos, em especial o crescimento das desigualdades e da corrupção. As principais críticas do novo líder são remetidas ao “paternalismo estatal” e à “inércia individual de quadros intermediários (dirigentes políticos) e diretores de empresa”, resultantes de um ordenamento socioeconômico fortemente centralizado, no qual os cidadãos esperavam as soluções vindas de cima; ao “igualitarismo” que, por sua vez, estaria nivelando por baixo as condições de vida dos trabalhadores mediante inúmeras “gratuidades e subsídios excessivos” concedidos pelo Estado; e a crítica frequente à ineficiência econômica das empresas estatais, que se expressaria em baixa produtividade, burocratismo, corrupção, descontrole administrativo (CASTRO, 2010).

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Em segundo lugar, depois do esfacelamento da União Soviética (URSS), a liderança cubana enfatizou os efeitos do bloqueio econômico norte-americano como a causa principal das extremas dificuldades econômicas em que o país mergulhou, ou seja, para além das dificuldades reais que o bloqueio impunha (e impõe), o foco neste aspecto constituiu uma estratégia política de sobrevivência do governo durante o chamado Período Especial (BRITO, 2012). No entanto, passado o momento mais difícil, agora se admite que este é apenas um problema e que o sistema econômico possui deformações intrínsecas que estariam obstaculizando o desenvolvimento do país. Ainda que permaneçam as sanções dos EUA, o foco no “inimigo externo” parece deixar de ser a preocupação central. E, desta forma, o governo estaria sinalizando uma atenção especial ao enfrentamento das questões internas mais prementes, que afetam a vida cotidiana da população.

Além disso, também chamou atenção uma abordagem política diferenciada com relação a outros momentos reformistas da Revolução (MESA LAGO, 2012). A ascensão de Raul Castro deu início a um dos debates mais críticos na história recente de Cuba, podendo ser entendido como uma tentativa de superar um falso dilema que vigorou durante algum tempo entre reforma e revolução, ou seja, no início dos anos 1990, o governo evitou o termo “reforma” para as medidas de combate à crise econômica, uma vez que identificava a reforma do socialismo com o revisionismo e, portanto, como a porta de entrada de uma restauração capitalista. Em parte, isto pode ser visto como uma reação às transformações que estavam ocorrendo nos antigos regimes comunistas do Leste Europeu, visando-se distanciar daquele rumo.

Durante o momento mais crítico do Período Especial, que se seguiu ao colapso das URSS, a liderança cubana recorreu a uma controlada abertura vista muito mais com caráter emergencial, basicamente como uma imposição das circunstâncias, e não como uma estratégia reformista mais ampla. O êxito do projeto atual, de outro modo, afigura-se como estratégico não só em vista de dar respostas à prolongada crise econômica que vem afetando o país, mas sobretudo para assegurar a continuidade futura do poder revolucionário, que está passando por uma transição geracional.

Sem pretensões de esgotar o tema e ciente das limitações deste artigo, nosso objetivo é analisar a emergência desta proposta reformista dentro de um quadro econômico e político mais amplo, ou seja, o momento que se abriu após a Guerra Fria foi especial-mente desfavorável às experiências de construção socialistas, tendo Cuba mergulhado em profunda crise, a qual colocou à prova a legitimidade e a autoridade do Partido Comunista e do governo encabeçado por Fidel Castro. Depois de superado o momento mais difícil do Período Especial — frequentemente descrito pelos dirigentes como uma etapa de sobrevivência e resistência do governo e do projeto socialista ante a avalanche neoliberal —, muitos autores apontaram que a Revolução Cubana passou a viver uma espécie de “dilema ou encruzilhada” na redefinição do seu projeto social. Coincidentemente, agora, o regime revolucionário experimenta uma transição geracional que deverá renovar a camada dirigente, sem os líderes históricos como Fidel e Raul Castro, o que poderá configurar um cenário político novo e, portanto...

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