Crítica do sagrado: uma necessidade do multiculturalismo crítico

AutorNoli Bernardo Hahn
CargoProfessor da Graduação, Especialização e do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado da URI, campus de Santo Ângelo. Membro do Grupo de Pesquisa no CNPq “Novos Direitos na Sociedade Globalizada, sob liderança da Profa. Dra. Salete Oro Boff.
Páginas95-105

Page 95

1 Introdução

Procuro, neste artigo, introduzir uma temática que acredito ser relevante. Falo em “introduzir” porque não vou me ater a uma argumentação que o tema mereceria. Neste texto, apenas, vou acenar apenas à questão central que deverá ser aprofundada em estudos posteriores. A hipótese é a de que um multiculturalismo crítico não pode abster-se de críticas ao religioso. Um multiculturalismo para ser efetivamente crítico não pode eximir-se de penetrar nas profundezas do religioso e do sagrado, de uma determinada cultura, para mostrar as sutilezas com que idéias e práticas teológico-religiosas podem ludibriar, enganar, ocultar, alienar e aculturar.

Explico, logo, nesta introdução, porque utilizo a categoria de compreensão multiculturalismo crítico. Por vários anos estudei a história, a cultura e a teologia do povo hebreu, aquele que elaborou a legislação mosaica. A história desse povo inicia em torno de 1850 antes de Cristo. Seus primeiros textos datam de 1150 a.C. Vê-se que os hebreus iniciaram a escrever a sua história, comparado a outros povos do Antigo Oriente, muito antes da maioria deles. Escreveram sua história principalmente em hebraico e, também, alguns textos em aramaico. Focalizo o hebraico, língua que mais tive oportunidade de estudar quando do meu doutorado. Essa língua, o hebraico antigo – não me refiro ao hebraico moderno –, é conhecida como uma língua não-conceitual. Isso significa que vários sentidos podem estarPage 96citados na mesma palavra. O sentido que se sobrepõe e se desliza de uma determinada palavra é verificado no contexto do texto. Seguir Javé, por exemplo, pode significar seguir o Deus da vida, o Deus libertador, como também em circunstâncias, significar ou ter características de cultivar um ídolo que leva à morte. A mesma palavra pode integrar sentidos múltiplos e, conforme o lugar, transborda e desliza um desses sentidos. Tal constatação sugere que não se pode reduzir o sentido ou o significado, este que desliza ou se desloca a partir de um lugar, para uma compreensão essencialista que impõe o sentido ou o significado para todos os tempos, espaços e situações.

Esse entendimento nos situa na perspectiva pós-estruturalista que faz críticas ao essencialismo, ao logocentrismo, e afirma a desconstrução de todas as significações que brotam da significação de um centro, de um logos. Lembro aqui especificamente a perspectiva teórica de Jacques Derrida e Gilles Deleuze. A pergunta, no entanto, é porque integro a categoria de compreensão multiculturalismo crítico. Esse termo vem da inspiração de estudos de Peter Mclaren. Cito, em seguida, um trecho, até longo, desse autor em que ele afirma, com clareza, a linha teórica que embasa o multiculturalismo crítico.

... estou desenvolvendo a idéia de multiculturalismo crítico, a partir da perspectiva de uma abordagem de significado pós-estruturalista de resistência, e enfatizando o papel que a língua e a representação desempenham na construção de significado e identidade. O insight pósestruturalista no qual estou me embasando situa-se em um contexto mais amplo da teoria pós-moderna – aquele arquipélago de disciplinas que está disperso no oceano da teoria social – que afirma que signos e significações são essencialmente instáveis e em deslocamento, podendo apenas ser temporariamente fixados, dependendo de como estão articulados dentro de lutas discursivas e históricas particulares. (MCLAREN, 1997, p.122-123)

Nesse entendimento, enxergo uma conexão teórica entre a língua nãoconceitual hebraica e a perspectiva pós-estruturalista que constitui a base teórica que sustenta a categoria de compreensão elaborada por Mclaren. Ele, porém, continua dizendo o seguinte:

A perspectiva que estou chamando de multiculturalismo crítico compreende a representação de raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações e, neste sentido, enfatiza não apenas o jogo textual e o deslocamento metafórico como forma de resistência (como no caso do multiculturalismo liberal de esquerda), mas enfatiza a tarefa central de transformar as relações sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados. (MCLAREN, 1997, p. 123)

Essa informação de Mclaren esclarece ainda mais a conexão que entendo possa se estabelecer entre multiculturalismo crítico e a crítica ao sagrado, especificamente a partir da compreensão da análise do gênero literário profético de tradição hebraica que, em seguida, pretendo mostrar. Mclaren não inclui, em sua reflexão, a crítica ao religioso. Aponta, por conseguinte, a idéia de que categorias representativas são resultados de lutas sociais e estas, ao mesmo tempo, possuem força transformadora de relações que se constituem em determinado momento ePage 97espaço. Em outras palavras, os signos e as significações são gerados a partir das lutas sociais, culturais e institucionais determinadas e estes mesmos significados se inclinam à transformação das relações que os gerou. Esta dinamicidade, este deslizamento e este deslocamento constantes de signos e significações podem ser constatados na dinamicidade do jogo textual de significados em textos críticos ao sagrado elaborados na sociedade monárquico-tributária da sociedade israelita. Quando, por exemplo, o profeta enxerga o seguidor da religião javista em nome de Javé fazer exatamente o contrário que sua Lei prevê e ainda justifica sua postura e sua prática recorrendo a Javé, usando seu nome para motivar injustiças e violências contra os pobres, há um deslocamento, um deslizamento de signos e significações encravados na mesma palavra.

Esclarecido o porquê da categoria multiculturalismo crítico, volto ao povo hebreu. Dizia anteriormente que os hebreus escreveram sua história antes da maioria dos povos do Antigo Oriente. Muitas são as razões que poderiam ser enumeradas do porquê, tão logo que dominaram a escrita, os hebreus terem seus escritos. Uma delas, sem dúvida, foi a compreensão de ser humano que perpassa a sua cultura.

Ser humano, para os hebreus, confunde-se com memória. Na compreensão hebraica, o homem e a mulher são constituídos na e pela memória, pela mediação da palavra, e especialmente pela inserção na memória coletiva. Isso significa que o indivíduo torna a existir, de fato, quando reconhecido e acolhido por uma coletividade. A preocupação em não perder a memória foi uma das motivações e uma das razões que fez os hebreus escreverem a sua história.

Os gêneros literários de sua ampla literatura são os mais variados. Interessa, aqui, o gênero conhecido como profético. A profecia...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT