Crítica ao contrato de aprendizagem como forma de promoção do trabalho decente do adolescente

AutorPatrícia Maeda
Páginas167-177

Page 168

"Se queres colher em um ano, deves plantar cereais.

Se queres colher em uma década, deves plantar árvores;

Mas se queres colher a vida inteira, deves educar e capacitar o ser humano."

Provérbio chinês1

1. Introdução

Em sua primeira sessão, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou duas Convenções relativas ao trabalho da criança e à jornada de trabalho. O trabalho infantil era, sem dúvidas, uma das questões mais urgentes a serem enfrentadas. Quase um século depois, a erradicação do trabalho infantil ainda é uma das metas da OIT e um compromisso do Brasil2 . Há menos tempo, tem-se discutido também no âmbito nacional e internacional a promoção de trabalho decente para o adolescente.

No entanto, há uma certa dificuldade na obtenção de dados estatísticos sobre os adolescentes entre 14 e 17 anos, pois a maior parte dos resultados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, promovida pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, acerca do trabalho, contempla "trabalhadores de 15 anos ou mais". Apesar disso, pode-se afirmar que, em 2013, havia cerca de 2,7 milhões de adolescentes de 14 a 17 anos trabalhando (84,1% do total de trabalhadores com menos de 18 anos)3. Certo é que grande parte desses trabalhadores se encontra no mercado informal, mas a formalização do contrato de trabalho, ainda que nos moldes do contrato de aprendizagem, seria suficiente para garantir a proteção integral ou, ainda, a promoção de trabalho decente a esses jovens? Sem a pretensão de esgotar as questões sobre o tema, nosso objetivo é o de analisar o contrato de aprendizagem em cotejo com o paradigma do trabalho decente e trazer outros elementos para essa refiexão, sem nos restringir ao âmbito normativo.

2. Trabalho decente e aprendizagem na OIT e no Brasil

Desde sua fundação, a OIT adotou 189

Convenções e 203 Recomendações4, além de diversos protocolos. Atualmente, a meta principal da OIT é "promover oportunidades para que mulheres e homens obtenham trabalho produtivo e decente, em condições de liberdade, igualdade, segurança e direitos humanos"5. Vários documentos da OIT se referem à expressão "trabalho decente" e diversas metas e estratégias são traçadas com base nessa ideia. Contudo, não há uma definição muito precisa sobre o que seja decente em termos de trabalho para OIT, pois há apenas referências a dimensões e princípios.

A Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho foi adotada em 1998 para promover direitos básicos, tais como: liberdade de associação e negociação coletiva, proibição do trabalho forçado e infantil e da discriminação no trabalho. Esses direitos básicos são considerados pré-requisitos para se tornar estado-membro da OIT6 e servem

Page 169

como parâmetro sobre o patamar mínimo de direitos e garantias para o trabalho no cenário mundial.

Nesse sentido, DERANTY e MACMILLAN7 explicam que, ao representar as principais formas sistêmicas de desrespeito à moral do indivíduo como trabalhador e a importância da negociação coletiva, os quatro princípios da Declaração de 1998 têm uma razão de ser: as variações no cenário mundial entre as expectativas culturais e os níveis de desenvolvimento econômico simplesmente inviabilizam qualquer tentativa de definir substancialmente as dimensões concretas de um trabalho decente. Portanto, a enunciação de princípios teria a maleabilidade necessária para contemplar as diversas realidades sociais no mundo.

No Brasil, depois da assinatura de Memorando de Entendimento com a OIT e a subsequente consulta às organizações de empregadores e trabalhadores em 2006, adotou-se a Agenda Nacional de Trabalho Decente (ANTD)8, com o estabelecimento de três grandes prioridades: gerar mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento; erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho infantil, em especial em suas piores formas9; e fortalecer os atores tripartites e o diálogo social como um instrumento de governabilidade democrática.10

Especificamente com relação aos jovens, há programas da OIT Brasil11 e do próprio governo brasileiro12 que traçam políticas, metas e estratégias de promoção de trabalho decente. Nesse artigo, limitaremos a discussão sobre o trabalho decente do adolescente ao contrato de aprendizagem, sob os aspectos da liberdade, igualdade, segurança e direitos humanos.

3. Aprendizagem e aprender

Para as psicólogas MORIN e AUBÉ, a aprendizagem é o processo psicológico responsável pela modificação das atitudes e das condutas do indivíduo. Aprender, por sua vez, pode ter três significações: "aprender que" (apprendre que) teria o sentido mais passivo de adquirir informação, sem necessariamente se perquirir sobre sua utilização na vida; "aprender a" (apprendre à) significaria adquirir uma habilidade, um savoir-faire, com uma experiência concreta e, por que não, com riscos de erros e de fracasso; e, por fim, "aprender" (apprendre), verbo intransitivo, compreenderia a experiência de fazer todas as coisas pensando em suas consequências e imaginando seus resultados (como poder corrigir seus erros, mudar seus hábitos, aproveitar seus sucessos, adaptar suas condutas às novas situações, conseguir imaginar soluções originais aos problemas cotidianos, criar ferramentas que melhorem a eficácia de seu trabalho etc.)13. Acreditamos que essas significações do "aprender" podem nos auxiliar na refiexão sobre o contrato de aprendizagem.

Page 170

4. Contrato de aprendizagem e liberdade

No plano normativo, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, a aprendizagem é o "instituto destinado à formação té cnico-profissional metódica de adolescentes e jovens, desenvolvida por meio de atividades teóricas e práticas e que são organizadas em tarefas de complexidade progressiva"14. Nos termos do art. 428, da CLT, a aprendizagem se formaliza mediante "contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação". Assim, quer nos parecer que, para o Estado (Ministério do Trabalho e Emprego) e para a "lei" (CLT), o aprender perseguido pela aprendizagem seria mais instrumental como o de adquirir uma habilidade, um savoir-faire (apprendre à), e não necessariamente abarcaria a refiexão emancipadora nem a formação de um pensar crítico (apprendre).

Por outro lado, a aprendizagem de que ora tratamos se formaliza por meio de contrato de trabalho específico. Este possui uma série de regras específicas, aparentemente com o fim de garantir a proteção do adolescente no trabalho, bem como sua formação profissional.

Entretanto, é importante lembrar que a aprendizagem é a exceção constitucional ao limite mínimo de idade para o trabalho, reduzindo-a para 14 anos. Esse detalhe talvez já fosse suficiente para a crítica, pois, por que devemos prover contrato de trabalho de aprendizagem aos adolescentes de 14 a 17 anos? Por que achamos que eles têm "direito" a isso? Não seria antes uma violação do direito à formação educacional livre e plena do adolescente? Como a Novlangue de Oceania, no romance 1984 de George Orwell, a linguagem contemporânea parecer-nos inverter o senso do real ("A liberdade é a escravidão"; "A ignorância é a força")15. Se, para ter acesso a uma formação profissional, o adolescente deve firmar contrato de trabalho, onde está a liberdade?

A educação é direito social previsto expressamente na Constituição Federal de 1988 no mesmo capítulo dos direitos dos trabalhadores. Seria esta a razão de associarmos tão naturalmente a educação profissionalizante ao contrato de aprendizagem? De todo modo, a educação é direito de todos e dever do Estado e da família (art. 205, CF) e, dentre seus princípios, destacam-se a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; liberdade de aprender; e garantia de padrão de qualidade (art. 206, CF). O art. 208 da Constituição Federal, por sua vez, prevê o dever do Estado em fornecer a educação básica e gratuita a todos entre 4 e 17 anos. Assim como OLIVA16, acre-ditamos que a idade mínima para o trabalho deve ser progressivamente elevada, inclusive para o contrato de aprendizagem17. Além dos diversos motivos bem pontuados por OLIVA, em nossa opinião, não é possível falarmos em liberdade de contratação para menores de 18 anos. Se eles não são civilmente capazes para negociar, contratar e contrair obrigações, como

Page 171

admitir que vendam sua força de trabalho, ainda que com expressa anuência dos pais?

Além disso, o princípio da proteção integral, que a doutrina vislumbra no próprio art. 227 da Constituição Federal, abarca a educação, o lazer, a profissionalização, a cultura, a digni-dade, o respeito, a liberdade e a convivência familiar e comunitária. Portanto, não seria possível pensarmos em acesso para todos os adolescentes à educação de qualidade, ao lazer e à cultura, sem a imposição da condição de aprendiz, sob a égide de um contrato? Defendemos que a educação garantida na Constituição seja não apenas aprender a executar uma tarefa (apprendre à), mas também desenvolver outras competências, como a da refiexão e a do senso crítico (apprendre).

O discurso de inserir o adolescente o quanto antes no mercado de trabalho a fim de retirá-lo das ruas, como forma de prevenção ao uso de drogas, ao envolvimento com o crime organizado etc., é contestável. Obviamente, para quem não...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT